O teatro, quando nos surpreende, é o melhor teatro. Começo assim esse texto. Porque fui ver Voz de Vó, em cartaz em São Paulo, grátis, no Teatro do Sesi, na Avenida Paulista. Pelo que li antes e pelas entrevistas que fiz, fui achando que seria um espetáculo com uma avó protagonista, no caso, Clarice Derzié Luz, no papel de Vó Genuína. Sim, é isso também, e ela está maravilhosa na tarefa que lhe incumbiram: entre outras delicadezas, usar chapéu com violetas e angélicas – para atrair os passarinhos.
Mas não é só isso. Mais do que ela, quem domina o espetáculo, quem comanda as ações e faz o fluxo da narrativa desaguar em um mar de talento cênico não é a avó, mas seus dois netos, Tito e Bento, interpretados por quatro atores, duas crianças e dois adultos. Quando esse quarteto entra em cena, o espetáculo se desvenda e se materializa em uma bela surpresa. A surpresa que todos esperamos quando vamos ao teatro. Quero dizer com isso que não é uma peça que conta a história hagiográfica de uma Vovó Maravilha com problemas de memória. É uma peça sobre o que essa avó divertida deixou impregnado no caráter de seus netos, no jeito deles, na pele, na alma, no mundo deles.
No programa da peça, a autora, diretora e idealizadora de Voz de Vó, Sara Antunes, expressa muito bem o que estou tentando escrever: “Não sei se é um espetáculo sobre a relação de crianças e sua avó que está perdendo a memória, ou sobre a memória de uma avó se manifestando para crianças crescidas.” As duas coisas, Sara, você sabe disso. Tudo (o espetáculo inteiro) está, a meu ver, nas mãos do quarteto que interpreta os netos. Eles fazem o ritmo, eles contam e recontam, eles embaralham memórias, tecem afetos, despejam cacos, arriscam versos. Cantam, tocam e dançam. E, sobretudo, brincam. A vovó aparece de vez em quando, brejeira, doce, terna, atrevida, confusa, mas fugaz, porque quem comanda na peça as ondas indomáveis do narrar são seus netos.
Sofisticação disfarçada
Voz de Vó é uma brincadeira com o tempo. A dramaturgia de Sara Antunes é muito sofisticada, disfarçada de simples. Não há linearidade, o que equivale a dizer: não há chão. Há nuvens. Há embaralhamentos, jogos de palavras, festa de metáforas, uma zonzeira inebriante que condiz com o tema à perfeição. Linguagem a serviço do conteúdo. Assunto decidido, vamos à coerência de escolhas instrumentalizadas para se falar dele. É assim que se escreve de verdade. Sara sabe. Ela poderia ter escrito algo bem sistematizado, lógico, aristotélico no sentido de ter começo, meio e fim – nessa ordem natural das coisas. Mas não. Ela escolheu caminhos deliciosamente condizentes com balanços, gangorras e tobogãs – afinal, se trata de uma avó que vai chegar ao ponto de não se lembrar mais do nome do neto tão amado.
O que a gente vê (e sente) na plateia é um jogo-jorro, um vaivém de lembranças e deslembranças, como um quintal que voa – ou como folhear os poemas com asas de Manoel de Barros. Algo assim também como cair nas areias movediças da prosa poética de um Bartolomeu Campos de Queirós, já que ele foi citado no programa pela autora. Tudo em Voz de Vó gira, rodopia, entontece – para fazer sentido. Afinal, o que se quer é retratar a memória se esvaindo – e nada mais entorpecente do que esse tema.
Memórias do esquecimento
Voz de Vó – que tem aparência de peça comercial normativa, mas é o oposto disso – alcança assim um outro tom, muito mais apropriado: a cadência dos descompassos. Que refinamento de narrativa. Quanta compatibilidade entre cena e vida. O teatro sendo praticado em total concordância com um estágio bem frágil de nossas vidas: a fase de envelhecer – e quase sem memória. E a peça vertiginosamente nos mostra como isso é visto e refletido na vida das crianças.
Gui Calzavara e Demian Pinto, os netos na fase adulta, dão um show de versatilidade, talento e jogo de cintura. São provocadores irreverentes, são clowns, são moleques, são músicos brincalhões, são escatológicos, são trapalhões de picadeiro, são regentes da interatividade da plateia, são craques na sonoplastia, são tecelões de retalhos musicais. Auxiliados por um esperto desenho de luz (Wagner Pinto), um videografismo arretado (Vic Von Poser) que exibe imagens em movimento até no xale da vovó e uma direção de arte delicada e expressiva (Analu Prestes), com um telão bailando frases, colagens e bordados de muito bom gosto, os dois músicos-atores seguram o espetáculo com atitude de protagonistas e firmeza de mestres, não sem correr riscos de minuto a minuto, já que a interação do público é sempre requisitada e isso pode fazer tudo desandar, se não houver controle na medida certa. Eles conseguem. Com louvor. A peça é deles. Atores mirins se revezam como as crianças Tito e Bento, inclusive os filhos da autora na vida real – muito desembaraçados e graciosos, enfrentando plateias numerosas com uma coragem louvável. E Vera Holtz participa em cenas pré-gravadas, forte e marcante como sempre. Mas Gui e Demian são a peça. Uma dupla e tanto.
Foto: Divulgação
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