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“Credores” e o Teatro Íntimo de Strindberg, na versão do Grupo TAPA

Coluna Por Frank Abreu

I.

Em 1887, o escritor e diretor teatral André Antoine inaugurou em Paris o Teatro Livre: uma pequena sala ocupada por jovens artistas que estavam revolucionando a linguagem dramatúrgica da época. No final do século XIX, a revolução artística atendia pelo nome de naturalismo, movimento que partiu da literatura de Émile Zola e se infiltrou nas mais diversas formas de expressão. Entre os dramaturgos empolgados com as inovações narrativas do Teatro Livre estava August Strindberg, um sueco que traduzia as próprias peças para o francês e trocava cartas com Émile Zola.

No curto período de 1887 a 1889, Strindberg escreveu as peças que, em suas obras completas, viriam a ser agrupadas sob a rubrica “Tragédias naturalistas”. Esta fase deu origem a obras-primas como Pai, Senhorita Júlia e Credores, entre outras. Algumas destas peças foram encenadas no Teatro Livre de Paris antes mesmo de estrearem na Suécia.

Entre as montagens mais recentes de Strindberg no Brasil, destacam-se as encenações do grupo TAPA dirigidas por Eduardo Tolentino de Araújo: Camaradagem (2006), Pária (2007, teleteatro para a TV Cultura), Credores (2012), Senhorita Júlia (2013), Brincando com Fogo (2020) e A Mais Forte (2021, teatro online).

Eduardo Tolentino afirma que Credores é a peça mais longeva no repertório do TAPA. A estreia foi em 2012 com Sérgio Mastropasqua, Chris Couto, Zé Roberto Jardim e Conrado Sardinha no elenco. Em 2023, a obra volta a ser encenada com outros atores e uma inédita tradução do sueco feita pelo próprio Tolentino e publicada pela Edusp. É esta montagem que retorna ao Galpão do TAPA para uma curta temporada (5 a 29 de setembro de 2024). No elenco estão André Garolli, Bruno Barchesi, Felipe Souza e Sandra Corveloni (que se alterna com Luciana Carnieli).

Credores nos apresenta um triângulo amoroso formado por Tekla, Gustavo e Adolfo. Strindberg constrói a história em três longas cenas e somente dois personagens dialogam em cada uma delas, na seguinte ordem:

1 – Gustavo e Adolfo

2 – Adolfo e Tekla

3 – Tekla e Gustavo

Na história, Gustavo aproxima-se de Adolfo e conquista sua amizade sem revelar que é ex-marido de Tekla. Esta, por sua vez, desconfia das mudanças de comportamento de Adolfo sem saber que seu ex-marido está por trás dessas transformações.

Teoricamente, o público só saberia que Gustavo é o ex-marido de Tekla no terço final da peça, quando o próprio Adolfo descobre. No entanto, dificilmente alguém vai chegar ao fim do espetáculo sem ter intuído a verdadeira identidade de Gustavo (ou lido em alguma sinopse). Perde-se a surpresa, mas algo muito mais potente vem substituí-la: a ironia dramática, recurso narrativo que consiste em dar à plateia informações que os personagens em cena não possuem. Nós sabemos quem é Gustavo, mas Adolfo não sabe.

Em um de seus escritos enviados aos atores que dirigia, Strindberg afirma:

“Um drama eficaz precisa conter um segredo que o espectador descobre no início ou no fim. Se o espectador conhece o segredo, mas os atores não, o espectador entretém-se com a brincadeira de cabra-cega daqueles. Se o espectador não conhece o segredo, então sua curiosidade aumenta e ele permanece interessado.”

A encenação de Tolentino satisfaz tanto os partidários da surpresa (pessoas que fazem questão de chegar ao teatro “virgens” de informações e que portanto não estão lendo esta resenha) quanto os fãs da ironia dramática (alguns, como eu, preferem ler a peça antes de ver a montagem). E o que todos veem no palco é um trio de personagens desnudando seus sentimentos, inseguranças e, principalmente, seus egos feridos: Adolfo é artista plástico e sua esposa Tekla é autora de um romance cujo personagem principal é baseado em seu ex-marido, Gustavo, um intelectual palestrante que não gostou nenhum pouco de se ver retratado de forma negativa no livro da ex-esposa, uma obra intitulada O Idiota.

A vingança de Gustavo é o combustível que movimenta a máquina da história criada por Strindberg. E sobre os detalhes do enredo, só mesmo assistindo ou lendo a peça.

II.

Em 1907, inspirado pelo Teatro Livre de Paris, August Strindberg criou o que pode ser considerado o primeiro espaço teatral alternativo de Estocolmo, o Teatro Íntimo. Com um palco diminuto para os padrões da época e uma plateia que comportava menos de 200 pessoas, o local era equipado com o que havia de melhor em termos de iluminação e possuía camarins confortáveis para os atores.

O Teatro Íntimo não servia para obras com “duração completa”, ou seja, cinco atos e trocas de cenários, mas era perfeito para o que Strindberg chamava de “peças de câmara”. Em carta de 1907, o grande dramaturgo sueco explicou a um conhecido os objetivos de uma peça de câmara:

“procurar o íntimo na forma, tema limitado, tratado detalhadamente, poucas pessoas, grandes opiniões, liberdade criativa, mas baseada na observação, na experiência, bem estudada; simples, mas não simplista; sem grande produção, sem personagens supérfluos”

É curioso notar que Credores possui todas as características acima, mesmo tendo sido escrita vinte anos antes da criação do Teatro Íntimo.

III.

O Galpão do TAPA é certamente menor que o Teatro Íntimo de Strindberg, mas ao contrário das montagens de séculos passados, os espetáculos contemporâneos não estão presos a cenários realistas: um palco vazio e alguns objetos de cena transportam o público para diferentes lugares.

Originalmente Credores tem um único cenário: o salão de um hotel à beira mar. No entanto, a montagem do Grupo TAPA nos leva sucessivamente a três espaços diferentes deste hotel (correspondendo a cada uma das três cenas):

1 – Entramos na sauna para ouvir a conversa entre Gustavo e Adolfo;

2 – Deslizamos sorrateiramente para o quarto de Adolfo e Tekla;

3 – Saímos do quarto do casal para testemunharmos o encontro de Tekla com Gustavo num determinado espaço público do balneário.

A transição entre os diferentes cenários da montagem se dá sutilmente: mudanças graduais na posição dos objetos de cena, no figurino, iluminação e na postura dos personagens. Essas transições acontecem de forma orgânica graças a um excelente recurso criado pelo diretor Eduardo Tolentino: um personagem extra, camareiro do hotel balneário, que não existe no texto original.

O ator Felipe Souza interpreta o camareiro que participa de todas as cenas, mas sem abrir a boca: ele carrega as toalhas da sauna, traz o jornal, serve as bebidas e, ao mesmo tempo, é o contrarregra do espetáculo: faz pequenas alterações no cenário de forma que, quando vemos, saímos da sauna e entramos no quarto do casal.

O casal é interpretado por Bruno Barchesi (Adolfo), Sandra Corveloni ou Luciana Carnieli (Tekla). André Garolli dá vida a Gustavo, um homem com o ego ferido que, tal qual Iago fez com Otelo, vai manipular o ciumento Adolfo e jogá-lo contra sua esposa Tekla.

Credores é um encontro perfeito entre um bom texto, ótimos atores e um grande diretor.

____________________

Referências:

August Strindberg. Credores. Tradução de Eduardo Tolentino de Araújo. São Paulo: Edusp, 2023.

August Strindberg. Senhorita Júlia e outras peças. Tradução de Guilherme da Silva Braga. São Paulo: Hedra, 2012.

Nota: As informações e opiniões contidas neste artigo são de inteira responsabilidade de seu/sua autor(a), cujo texto não reflete, necessariamente, a opinião do INFOTEATRO.

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Frank Abreu

Frank Abreu

Formado em História pela FFLCH/USP. Acredita que os espectadores fazem o teatro junto com os artistas. Morador de São Paulo, aproveita ao máximo as oportunidades que a cidade lhe oferece para fazer teatro a partir de seu lugar na plateia.

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