O solo escrito, intepretado e dirigido pela atriz Ana Guasque, natural de Porto Alegre, traz ao palco uma terrível realidade: a violência sexual infantil. A ideia da peça é justamente promover o debate a esse respeito, possibilitando que o público tenha consciência de tal problemática social, estimulando a denúncia em casos de violência dessa natureza. Como disse a atriz: “Proteger as crianças e adolescentes é um dever de todos nós!”.
A trama se desenvolve a partir da conversa de duas irmãs, que não se veem há muito tempo. Nesta situação, são reveladas situações traumáticas que ambas viveram durante a infância, envolvendo abusos e violências diárias. Confiram a seguir:
Qual a inspiração por trás da criação de Broken Cake e por que decidiu abordar o tema do abuso sexual infantil?
ANA GUASQUE: Broken Cake é uma história real, cada fato narrado aconteceu de verdade, mas por respeito e proteção à vítima, não posso revelar a fonte. O que posso dizer é que essa história não é apenas de uma pessoa, é a realidade de centenas de milhares de crianças e adolescentes que estão oprimidos no silêncio, na dor, na vergonha, julgando-se responsáveis ou mesmo não conseguindo compreender o que lhes acontece. O tema da violência sexual contra crianças e adolescentes é algo muito sério, necessário e urgente de ser abordado, debatido, trazido à luz na sociedade. Certa vez, ouvi de um grande amigo estrangeiro que, fora do país, o abuso infantil é considerado questão cultural brasileira. Aquilo foi um soco na cara, um pontapé na barriga. Como profissional da cultura, me coloco na obrigação de tentar mudar isso. Abuso sexual não pode ser considerado normal em nenhuma sociedade. É dever do Estado, e de todas as pessoas que o compõem, zelar e proteger os menores, para que possam se desenvolver num ambiente seguro. A peça trata do abuso sexual que ocorre dentro de casa, do pai com a filha. Isso é uma realidade em nosso país… crianças são abusadas por aqueles que as deveriam proteger e amar, às vezes pelo pai, o irmão mais velho, um tio, o avô, um vizinho ou amigo próximo, o pastor da igreja, o padre… e às vítimas, resta o silêncio e a dor. É urgente criarmos consciência social sobre este tema, sensibilizar a população, educar, a partir de conhecimento e debate. Esse tema é tão terrível, tão devastador. As vítimas irão carregar consequências severas para o resto da vida, muitas acabam se suicidando. Atualmente, o Brasil está em segundo lugar nos índices mundiais de abuso e violência sexual contra crianças e adolescentes, sem contar os casos que não são contabilizados. Como artistas, temos obrigação em sensibilizar a população para o tema, para que se possa transformar alguma coisa. A arte é uma das ferramentas possíveis para isso.
Como espera, a partir da peça, estimular o debate sobre a violência contra crianças e adolescentes?
AG: O espetáculo Broken Cake, além de sua função artística, possui função social, de sensibilização, de criação de entendimento, de consciência. Promove também a representatividade. Na estreia, uma moça me abraçou após o espetáculo e disse: “Obrigada, eu sou uma dessas crianças.” Isso é representatividade. A vítima se sente representada e sabe que não está só. Então, o espetáculo foi criado de uma forma artística, delicada, porém contundente, abordando abertamente a gravidade do tema. A mensagem central é mostrar que é real, que acontece. E pior, que é considerado algo corriqueiro, comum. É como dizer: “Atenção pessoal! Vamos lá! Não vamos nos fazer de bobos, fazer de conta que não é com a gente, enquanto a criança do vizinho apresenta todos os sinais de violência sexual. Não vamos ser indiferentes com aquela criança que está toda machucada, de pés descalços no semáforo, enquanto você seguro e protegido dentro de seu carro caro”. E, ainda: “Atenção! Nós estamos de olho, não vamos deixar você satisfazer suas perversidades com crianças e adolescentes!”. Temos que aprender a observar, aprender a acolher essas crianças, conhecer meios de denúncia, cobrar providências do Estado, das autoridades, cobrar educação sobre o tema. O propósito central é que se possa acabar com isso. Um povo civilizado não pode abusar sexualmente de ninguém. Espero estimular esse debate, com duas frentes. A primeira, com a sensibilização promovida pelo próprio espetáculo; a segunda, criando uma rede de conscientização, a partir dos próprios expectadores já sensibilizados. É um meio de alcance ainda muito pequeno, mas cada pequeno passo, nesse sentido, é um grande passo. Como profissional de cultura, faço o que está ao meu alcance, com as ferramentas que tenho, nesse caso: o teatro. Digo que, se durante toda a temporada algumas pessoas saírem do teatro dispostas a conversar abertamente sobre o tema, conversando com seus filhos, filhas, sobrinhos, filhos de amigos, alunos, com olhar mais atento e cuidadoso para as crianças, observando aquele adolescente que está mais retraído, a criança do vizinho, podendo até constatar sinais de abusos (às vezes não se tem evidência nenhuma) e, assim, sabendo como tomar providências e denunciar, estarei satisfeita com meu trabalho. Temos de cuidar das crianças. E cuidar das crianças, também é cuidar da sociedade. Uma sociedade com crianças protegidas, seguras e conscientes, tenderá a ser mais saudável.
Como vê o papel do teatro na quebra de silêncios e na conscientização sobre questões tão delicadas como essa?
AG: O teatro é um difusor de conhecimento e debate muito potente, desde sempre. O teatro possui uma capacidade de sensibilização única. A partir da representação ao vivo, no trato direto com o público, isso tem uma força muito grande. Além disso, é uma responsabilidade muito grande para nós, artistas, a escolha do que vamos falar, o que vamos trazer para as pessoas, o que vamos fomentar. Acredito que, contar essa história é um estímulo para a quebra de silêncios. Não é ficção, é a realidade na sua crueza mais dura. Porém, assim como o tema é delicado – e terrível! – a forma de contar, a narrativa, a encenação, são propostas com muita delicadeza, convidando o público a refletir. Quando pessoas saem do teatro e dizem: “fiquei tocada, essa peça é necessária”, sinto que estou cumprindo minha missão.
Quais as expectativas para o projeto?
AG: É que mais e mais pessoas possam assistir, apresentar em todos os cantos do país – é meu trabalho social, além de artístico. Minha expectativa é poder tocar a alma dos expectadores, sensibilizar, para conseguirmos conversar, debater, transformar. Utilizar o espetáculo, cada vez mais, como meio de visibilidade para o tema. Apenas se toca nesse assunto quando acontece uma terrível tragédia e não deve ser assim, nós precisamos evitar novas tragédias. E o teatro tem essa força. Minha expectativa é impactar mais pessoas, para promover consciência social e humana. Como disse, em relação ao tema, cada passo é um grande avanço na quebra de tabus, na desmistificação do assunto, na ruptura de silêncios, na geração de consciência, reflexão e educação. Nosso trabalho é sensibilizar, levar pessoas ao teatro. Sigamos com fé!
SERVIÇOS
Temporada: 6 a 29 de julho, de quinta a sábado, às 20h.
Local: Sesc Pinheiros – Auditório, 3°andar – Rua Paes Leme, 195, Pinheiros.
Ingressos: R$30 (inteira), R$15 (meia entrada) e R$10 (credencial plena).
Vendas online em sescsp.org.br a partir do dia 27/6, às 17h. Nas bilheterias do Sesc a partir do dia 28/6, às 17h.
Duração: 60 minutos.
Foto: Foto: Ary Brandi