Quem está aí?
Quanta audácia, não? A peça de teatro mais conhecida do mundo todo, aquela que é recheada por solilóquios e frases emblemáticas que as pessoas saem recitando por aí aos quatro ventos – às vezes sem mesmo saber de onde partiram –, começa com uma pergunta banal. A resposta à interrogação, porém, vem logo na sequência, a dúvida dura pouco, bastam alguns passos para os soldados Bernardo e Francisco reconhecerem um ao outro durante uma troca de guarda embaralhada pela densa neblina da madrugada, ambos dedicados à proteção do castelo de Elsinore. Mas, não nos enganemos!, se a pergunta inicial é respondida é só porque ela é uma falsa reposta, Hamlet continuará sendo uma peça sobre a dúvida, ela começa com uma interrogação inocente apenas para nos alertar de que o protagonista que aparecerá a seguir será uma espécie de charada ambulante, dominado por uma teimosia contínua de nunca parar de fazer perguntas e, mais importante!, voltar as interrogações para si próprio: quem sou eu? Eis a questão.
Hamlet pergunta para nós aquilo que ele jamais vai conseguir responder até o final da sua jornada. Não é curioso? O maior personagem da dramaturgia ocidental só é grande, talvez, porque convive com dúvidas atrozes a respeito da identidade que carrega. Desconfio de que nós aqui, nesse mundinho de glamour e de histerias virtuais, estamos um pouco longe dessa consciência, afinal, não nos é hábito polvilhar certezas a respeito de quem somos, dominados pela mania ininterrupta de espalhar aos ouvidos do universo o número do nosso RG e CPF? Um atestado de vaidade extrema, evidentemente – Hamlet também é vaidoso, mas por motivos diversos -, e a vaidade, dentre os pecados, é aquele vício que menos necessita de justificativas condenatórias: o homem nasceu vaidoso e morrerá vaidoso, e o resto é silêncio. Mas o que me surpreende mesmo é que essa necessidade de afirmação acometa justamente os atores de hoje, aqueles que idolatram Hamlet como o personagem dos personagens, e que deveriam ser os primeiros a desconfiar da estupidez auto-bajulatória… Que espécie de lapso é esse? Somos distraídos ou tontos? Eis a questão.
Hamlet é um grande personagem porque ele é igualmente um grande ator – um ator disparador de interrogações e que padece da doença de não encontrar uma imagem de si próprio que dê conta de lhe satisfazer. É esta angústia que o move, e é por ela que Hamlet consegue ser perspicaz, irônico, inteligente e manipulador – todos esses atributos, acredito eu, inerentes a um ator de qualidade no exercício de sua função. Por que será que justamente o ofício da dúvida, da interrogação, do intervalo entre a máscara da comédia e da tragédia, é hoje preenchido e bombardeado pela assertividade que a tudo quer nomear, e, principalmente, emitir o sacrossanto carimbo que diz aos seus portadores: este é você!…??? Afirmar uma identidade virou um selo de idoneidade, e justamente o ator que deveria ser celebrado pelo inverso disso assina embaixo de um contrato que em nada o beneficia. Hamlet só é gigante porque ele se assemelha ao intérprete que pisa ao palco do teatro tomado pelo desequilíbrio da dúvida para tentar, mais uma vez, dar conta de comunicar algo de urgente a alguém. É a ação que o orienta a continuar, não a psicologia autorreferente que faz do umbigo o centro nevrálgico da galáxia. Parece simples e banal, não?
Hamlet é cínico, hipócrita, e um baita fingidor. Dito isto, abram o dicionário no verbete “ator” e notarão que o príncipe da Dinamarca gabarita a etimologia da palavra. Hamlet só é o que é porque ele pode ser qualquer coisa – e coisa nenhuma. Ele é filosófico, mas também ingênuo. Algumas vezes demonstra uma maturidade assustadora, em outros momentos é tão infantil que se equipara a uma criança mimada. Se por um lado é sincero e generoso, por outro é tirânico e violento. Ou seja, ele é um baú de máscaras itinerantes, máscaras essas que não duram muito tempo em seu rosto. Vive vestindo e desvestindo disfarces para ao cabo de tudo, antes de morrer, pedir para que seu amigo Horácio narre a sua história. Mas qual história? Nem isso fica claro. Muito menos sob qual prisma tratar uma trama cuja figura central é ardilosamente difícil de definir. Tanta energia gasta na convivência com interrogações delega a Hamlet um vazio avassalador. Ao mesmo tempo em que carrega dentro de si um milhão de personalidades, ele é igualmente oco e frágil, basta um vento para derrubá-lo. E não será esta outra característica do ator, a de ser o portador de um silêncio melancólico? Depois de gastar o verbo condenando as arbitrariedades do mundo, é ele quem se torna o condenado, recolhido à condição de um náufrago solitário que entende já ter dito tudo o que deveria dizer. Que sejam os outros a contar a sua história, jamais ele próprio…
Poderíamos absorver um pouco dessa audácia, não acham? Parece-me mais sábio do que empenhar fortunas em coaches que nos ensinam a mergulhar dentro de nossa alma afetada para fazer emergir uma verdade interior translúcida. Eu prefiro ficar ao lado de Hamlet, todo ele fake, descaradamente fake, histrionicamente teatral e falso.
A propósito, quem escreveu Hamlet foi Shakespeare… mas, pouco importa, esse tal de William tinha outras preocupações que a de imprimir sua assinatura nos anais da eternidade. Aliás, alguns defendem que ele sequer existiu. Sr, Fake News.
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