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A Arte de Ler Uma Personagem

Coluna Por Chico Carvalho

Na ocasião da publicação deste texto a Fernanda Montenegro já deve ter lotado as novas sessões de seu espetáculo-leitura das crônicas de Nelson Rodrigues no Rio de Janeiro. Ela já deve ter sido aplaudida de pé pela plateia, ovacionada, celebrada, enfim, tudo o que é de justo merecimento a essa figura que teima em nos lembrar que para pisar em um palco é necessário FORMAÇÃO, que o ator não é um relações públicas cujo Instagram lotado de segui-lóvers serve para suprir o conteúdo daquilo que habita a caixa craniana. Lotar uma plateia de um teatro para ver uma atriz do naipe da Fernanda Montenegro já é um alento destes que raramente acometem o pessimismo que habita o tutano de meus ossos. Só de imaginar que não estamos lidando com algo do tipo “Fernanda Montenegro, O Musical” já inunda estas pálpebras de lágrimas… Só de ter a certeza completa de que não haverá uma figura simpática no palco a tentar arrancar gargalhadas da plateia já me insufla os pulmões com aromas de horizontes perfumados…  Ficaria ainda mais aliviado, porém, se a plateia que lota para ver a Fernanda Montenegro ultrapassasse a figura dela – merecedora de todos os rapapés, digo e repito – e aplaudisse a ética dessa estupenda artista da cena. Uma atriz – vejam só! – que tem a audácia de LER Nelson Rodrigues publicamente. De novo: LER. Mais nada. Basta ler e depois cerrar as cortinas. Adeus. Tchau. Voltem sempre.

Já me cansa as vistas e entope os ouvidos ir ao teatro e ver o ator pirulitar em cima do texto do pobre do autor. Um crime inafiançável porque o bendito autor é um condenado a nunca poder se defender daquele que resolve “dar a sua versão” daquilo que ele botou no papel a duras penas e em tempos imemoriais, instantes gastos na tentativa alucinada de escolher as melhores palavras para que um dia fossem ditas por algum ator de espírito, digamos, “criador”. Ora, sem essa acusação de textocentrismo do século XIX (embora eu morra de saudades, admito, da pharmácia com H), porque a questão aqui é justamente preservar o ator em sua função criativa e transgressora. O problema é que já ninguém mais parece entender que mastigar em alto e bom som as palavras de um bom dramaturgo é exatamente um ato de subversão – experimentar a maneira possível de ressoá-las no espaço é um território de mistério infinito, e de encontros inusitados com o tal do autor que lhe pede encarecidamente: digas tu estas sacrossantas frases e encontres a forma adequada de chapá-las nas paredes do teatro…. Mas – pensam o performers-criadores de hoje (tudo virou performance-criativa, reparem) melhor seria esquartejar o proseado para ver de que maneira podemos “atualizar” aquilo que já está embolorando no papel há gerações… Será que Shakespeare nos representa…? Diria o “artista engajado” das causas contemporâneas… Tsc, tsc, tsc.

Lembro-me de uma ocasião em que fui assistir a uma leitura dramática (leitura, não o espetáculo!). Os atores devem ter combinado todos juntos antes de começarem a disparar os verbos: as palavras não bastam, pessoal! Vamos lotá-las de interjeições, de grunhidos, de bons dias que não existem, de adeuses sumidos, de uns tchãns e yéahs que o autor não pensou em registrar mas que nós, sapientes atores de hoje, chegamos a conclusão de que são essenciais para estabelecer uma comunicação quentinha com a plateia… O resultado é aquela delícia de sempre: ao invés de estarmos diante de uma história contada por um ator, vemos tão somente o ator que tenta a todo custo mostrar para nós como ele é talentosíssimo para contar aquela história (e o autor-defunto – os defuntos-autores são sempre os melhores! – dando mortais carpados para trás nos recônditos do além). Soubesse eu dessa tertúlia vaidosa e teria marcado um café com os tais atores numa padaria, ali sim eles estariam livres, entre uma tragada e outra de cappuccino fumegante, para me convencerem de suas habilidades interpretativas-contemporâneas…

Outro dia fui ao teatro assistir a um espetáculo (espetáculo, não leitura dramática!) e o mesmíssimo acontecia, dessa vez pela vaidade do diretor, que queria nos convencer de que a sua linguagem “encenatória” era um treco genialmente potente para turbinar o texto que, por ser apenas bom, merecia uns tapas nas ancas…; se houvesse um drink de cicuta por ali eu o teria tomado, tamanha a chatice do evento! A fulana atrás de mim, após a apresentação, soltou um retumbante e sentencioso: “Que baita ator!”. Ela resumiu tudo… Que baita ator… e mais nada. Ah, todos deveriam lotar as plateias para ver a Fernanda Montenegro LER Nelson Rodrigues. É por isso que ela é a nossa maior atriz. Ela sabe que LENDO, “apenas”, ela está ampliando tudo, adicionando sua versão, engrandecendo as palavras, afiando o verbo até ele chegar como uma flecha em nossos corações. A Fernanda Montenegro sabe, evidentemente, que ao LER Nelson Rodrigues ela dá generosamente um passo para o lado e nos apresenta o problema que está no texto sem sumir por completo atrás dele, sem empurrá-lo para trás de sua vaidade lancinante. A vaidade do bom ator é sempre essa: ele se livra de ser o protagonista central da parada e fala para a plateia: trabalhem aí também vocês porque eu não sou um fantoche de circo para fazer traquinagens na esperança de ganhar uns afagos.

Santa Fernanda Montenegro, guardai-nos!

Nota: As informações e opiniões contidas neste artigo são de inteira responsabilidade de seu/sua autor(a), cujo texto não reflete, necessariamente, a opinião do INFOTEATRO.

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Chico Carvalho

Chico Carvalho

Ator, radialista e apresentador da Rádio Cultura FM de São Paulo. Formado em Artes Cênicas pela Unicamp e em Comunicação Social - Rádio e TV - pela Fundação Cásper Líbero. Mestre e doutor pelo Departamento de Artes da Unicamp.

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