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ÒG.A.L.A.Ó Dire‹o: Gerald Thomas. Com Fabiana Gugli. Foto: Roberto Setton | Divulga‹o Setembro de 2021
ÒG.A.L.A.Ó Dire‹o: Gerald Thomas. Com Fabiana Gugli. Foto: Roberto Setton | Divulga‹o Setembro de 2021

G.A.L.A., de Gerald Thomas, chega a 2023 sem medo, nem esperança

O monólogo protagonizado por Fabiana Gugli atualiza falas, intenções e críticas e aponta citação a Gal Costa

Crítica Por Dirceu Alves Jr.

G.A.L.A., novo velho espetáculo de Gerald Thomas, em cartaz no Sesc Belenzinho, é uma peça em três tempos. Em setembro de 2021, o dramaturgo e diretor concebeu uma versão on-line transmitida do Sesc Avenida Paulista, em que comandou a atriz Fabiana Gugli através do zoom. Ele, lá de Nova York, e ela, aqui em São Paulo, cada um de suas casas. A pandemia aterrorizava a população – só naquele mês foram registrados mais de 16.000 óbitos no Brasil –, o processo de vacinação seguia a passos de tartaruga e o negacionismo era reforçado pelo então presidente Jair Bolsonaro.

Frases como “a gente vive, a gente sonha, a gente idealiza e a gente se movimenta, a gente atua, se politiza, se mobiliza, se sente vivo e militante, mas e depois… E depois… Nada”, saídas da boca em close de Fabiana Gugli perturbavam o espectador de pés e mãos atadas. Existia, porém, uma perspectiva de como seria o novo mundo pós-pandêmico e de que jeito aquela solitária mulher, personagem da história, sobreviveria depois de tantos traumas.

Bem, mas antes de seguir adiante nesta reflexão é importante situar minimamente sobre o que se trata G.A.L.A. – o que nunca é simples em relação ao trabalho de Gerald Thomas. A protagonista aparece à deriva em um barco prestes a naufragar. Alto-mar, chuva, trovões, vento. Ela busca uma saída viável para renascer depois do caos. Percebe, no entanto, que só será ouvida se romper com antigos discursos e enxergar o novo. Para isso, quebra todos os pratos e renega referências que sempre a nortearam, mas parecem inúteis diante do “novo normal”. “Chega de Beckett, agora tudo é concreto, para de idolatrar aquela ‘Guernica’ de Picasso”, grita a personagem, ao telefone, com o ex-namorado Sancho, em referências ao dramaturgo irlandês e ao pintor espanhol.

O dito “novo normal” chegou, e G.A.L.A. enfrentou o seu segundo ato, diante de uma plateia presencial, protegida por máscaras, em duas sessões no Festival de Curitiba, em março de 2022. Na época, o Brasil alcançava as 700.000 mortes pela covid, mas o avanço da imunização evidenciava o seu efeito com a desaceleração dos óbitos e uma disposição do público para frequentar espaços coletivos, inclusive os teatros. A verborragia do formato digital foi minimizada para ganhar com as imagens só possíveis no palco, e o próprio Thomas, sempre tão descrente, abria brecha ali para um futuro. “A personagem não pode aceitar passivamente o naufrágio porque ela enxerga que a vida continua e não está mais limitada a um vírus”, disse, em entrevista, durante o Festival de Curitiba.

Inédita em São Paulo, G.A.L.A. encara a sua primeira temporada, desde o dia 15 deste mês e segue em sessões, de sextas a domingos, até 8 de outubro. A pandemia é uma lembrança triste do passado e, caso alguém contraia covid, os sintomas costumam ser leves. Bolsonaro foi derrotado nas urnas por Luiz Inácio Lula da Silva há quase um ano e, desde janeiro, o Brasil mudou de presidente. Diante deste cenário, uma nova G.A.L.A. entrou em cartaz e, ao contrário do que se poderia imaginar, a peça está muito mais triste e desesperançosa, à deriva existencialmente.

É uma espécie de continuação do que foi visto em Curitiba, que já dava sequência ao projeto digital. Os três espetáculos são independentes, claro, mas quem os acompanhou enxerga as nítidas transformações neste eterno “work in progress”. O barco da protagonista não parece mais tão no meio do mar. Aliás, está bem próximo da terra. Os trovões, o vento e a chuva que se faziam notados nas duas versões não são ouvidos. A tempestade passou. Só que o sol não nasceu, e o novo mundo parece tão desolador e decepcionante como aquele enfrentado há pouco tempo.

O dramaturgo, desde a concepção do projeto, fala que a figura feminina protagonista veio da inspiração da imagem da russa Gala Dalí (1894-1982), mulher de Salvador Dalí, que, apesar das pretensões, permaneceu restrita ao papel de musa do artista plástico. Na pele de Fabiana, a personagem poderia ser até comparada a uma espécie de alter ego de Thomas, angustiado com a sua necessidade de renovação artística diante de um mundo que o considera ultrapassado. Na atual versão, porém, essa ideia é evaporada. A Gala de Dalí ficou para trás, e a personagem assume contornos próximos a qualquer sobrevivente da pandemia e das arbitrariedades dos governos totalitários.

O discurso reforçado por Fabiana Gugli ao telefone com Sancho, o ex-namorado, coloca Thomas presente em cena de uma outra forma. Agora, seria, sim, Sancho o alter ego do autor e dramaturgo, e Fabiana, sua parceira de trabalho há mais de 20 anos, com quem foi casado, a pessoa com autoridade para sacudi-lo das acomodações e jogar verdades na sua cara. A protagonista grita com Sancho frases como “eu te ensinei com quantos pilares se faz uma casa” e atualiza aquela fala em torno das referências – “Chega de Beckett, agora tudo é inteligência artificial, para de idolatrar aquela ‘Guernica’ de Picasso”.

O trecho “a gente vive, a gente sonha, a gente idealiza e a gente se movimenta, a gente atua, se politiza, se mobiliza, se sente vivo e militante, mas e depois… E depois… Nada” aparece carregado de uma melancolia infinita, estabelecendo contrapontos, inclusive, com os meses iniciais do governo Lula. O texto perdeu grande parte de sua ironia e as risadas são inaudíveis na plateia, mesmo nas horas em que Fabiana injeta certa comicidade. A atriz caminha sobre o mar de plástico azul, chega perto do público, encara algumas pessoas de olhos arregalados e quase tropeça em uma cabeça de caveira enterrada na beira do mar, em mais uma citação, desta vez ao Hamlet, de William Shakespeare. Tudo aproxima, porém, está distante.

Fabiana evidencia uma segurança rara junto à dramaturgia visual de Gerald Thomas. Apesar de ter apresentado poucas vezes este espetáculo, a atriz mostra um raro domínio da partitura vocal e corporal criada para ela em meio aquele conjunto performático emoldurado pela iluminação assinada por Wagner Pinto. Coisas da intimidade. Como a personagem, Fabiana foge do desespero, do pavor e caminha para um conformismo, carregado de descrença e falta de expectativa, uma ideia sublinhada o tempo todo nas palavras de Thomas como um desabafo verdadeiro. A pandemia passou, Lula foi eleito há um ano, mas aquele barquinho continua sem um porto para se ancorar. E, se essa mulher o deixar para trás e fincar pé na areia, talvez seja ainda pior. O sonho de mudança seria enterrado de vez.

Na cena final, Fabiana tira a parte de cima do vestido criado pelo estilista João Pimenta e o que se vê são os bicos dos seus peitos escondidos por fitas isolantes. Lentamente, a protagonista levanta um dos braços e fica congelada. Trata-se de uma citação-homenagem à cantora Gal Costa (1945-2022), lembrando a emblemática imagem do show O Sorriso do Gato de Alice, dirigido por Thomas em 1994, em que a artista mostrava os seios ao interpretar o samba-rock Brasil. Como Gal cantou mais tarde, em 2015, em música de Arthur Nogueira e Antônio Cícero, a G.A.L.A. de Gerald Thomas chega ao fim de 2023 sem medo, nem esperança e, ainda por cima, cerceada pelas redes sociais que proibiriam os mamilos da atriz de circularem pela internet. Assim, fica difícil não pensar em Beckett e, quem sabe, citar Dias Felizes.

Nota: As informações e opiniões contidas neste artigo são de inteira responsabilidade de seu/sua autor(a), cujo texto não reflete, necessariamente, a opinião do INFOTEATRO.

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Dirceu Alves Jr.

Dirceu Alves Jr.

É jornalista, escritor e crítico de teatro, trabalhou em Zero Hora, IstoÉ Gente e Veja São Paulo e publicou os livros Elias Andreato, A Máscara do Improvável (Humana Letra) e Sérgio Mamberti, Senhor do Meu Tempo (Edições Sesc).

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