Peru, Chile, Espanha, Colômbia, Escócia, Irlanda, Argentina, Angola, Irã, México, Suécia, Estônia, Inglaterra, França, Eslováquia, China e Índia.
Mas o que é esse amontoado de nomes de países para começar uma crítica? São os locais em que o Grupo Sobrevento, de São Paulo, já se apresentou, com seus espetáculos de animação de bonecos, formas e objetos. Fundado em 1986, o Sobrevento é um grupo que se dedica à pesquisa, teórica e prática. No Brasil, tem-se apresentado em mais de uma centena de cidades de 23 estados. É um fenômeno. Um acontecimento. Um ponto fora da curva da mesmice e da falta de talento e inteligência. Um caso de sucesso frutífero em meio a tanta aridez que assola a cultura teatral brasileira.
Dito isso, vejam, agora no Sesc Belenzinho, o mais novo espetáculo da trupe, Cadê o Sobrevento – 20 anos depois. Eu vi no mês passado, na temporada de estreia em outra unidade do Sesc (Pompeia), e saí de lá com nó na garganta. Me emocionei com tanta alegria em cena, tanta brincadeira, tanto deboche. O Sobrevento em um registro de atuação que seus fãs há tempos não viam. Todos estão soltinhos, bem soltinhos, vestindo despojamentos, esbanjando sorrisos, distribuindo empatias.
Conto o básico do enredo: Um grupo de teatro de animação some de repente e fica desaparecido por 20 anos. Onde estará? No telão, uma reportagem em tom alarmista propaga esse sumiço. Enquanto isso, vemos num castelo o que se passou, depois de 20 anos, com os personagens de uma de suas peças, a última que o grupo tinha feito, Cadê o Meu Herói? Será que o sumiço da trupe tem a ver com esse castelo?
A partir desse mote, o Sobrevento deita e rola, como de fato não fazia no palco há alguns anos. Muita piada, muito trocadilho, deboches, sarcasmos. Fina ironia. Como eu avalio essa surpresa? Como sinal de pura maturidade do grupo. Depois de tantos espetáculos tão tocantes, emocionantes, poéticos em cada cena, sensoriais para a primeira infância ou focados na investigação da alma, eis que eles também têm a vontade de brincar, o desejo de ir além, a disposição para outros desafios. Um convite à festa. E, claro, em se tratando do Sobrevento, nenhuma diversão é mera diversão. O conceito por trás da fase de descontração é forte, atual, potente, qual seja: saber rir de si mesmo.
Quanta inteligência demonstra quem tem essa capacidade de olhar para sua trajetória e rir. Rir tanto dos sucessos quanto das dificuldades. Rir de toda pesquisa, rir de cada dedicação. E fazer esse riso resultar em crescimento, em inspiração para que a plateia também faça o mesmo. Afinal, o País passou recentemente por poucas e boas. É hora de refletir sobre tudo o que enfrentamos – e por que não usar um tom de celebração e graça? Eis a chave para se compreender o trabalho atual do Sobrevento.
E tem mais. Tema bom nunca falta para o Sobrevento. Fartura em temáticas sempre marcou o grupo. A princesinha que ficou por 20 anos crescendo e virando adulta dentro de um castelo/clausura agora quer liberdade. Usando humor, o espetáculo fala com os jovens sobre anseios de libertação, sobre alçar voos, sobre vencer medos, destravando as portas majestosas que emperram nossas buscas. Palmas para a dramaturgia do argentino Horácio Tignanelli, mais uma vez recrutado pelo Sobrevento. O texto é espertamente coloquial, informal, com várias expressões jovens contemporâneas – e vejo isso como uma coerência a mais na opção por uma montagem acolhedora, nada formalizante, ao contrário, que procura ficar bem próxima do ‘aqui e agora’, mesmo se passando dentro de um castelo medieval.
E por falar em mundo contemporâneo, há um telão o tempo todo no palco, ao lado do magnífico castelo cenográfico projetado por Telumi Hellen. O telão tem seu propósito imediato e pragmático: fazer com que a plateia veja mais de perto a precisa manipulação dos bonecos, uma técnica milenar chinesa que o Sobrevento aprendeu com muito esforço e resultados inacreditáveis. Desde dançar e lutar até simplesmente servir um chá – as ações de cada boneco são de um requinte de se tirar o chapéu. Repare nas cenas com o leão, por exemplo. Quanto acerto, que eficiência. O Sobrevento é mesmo um orgulho nacional quando consegue assim, com essa expertise, ir além dos limites mais comuns da animação feita ao vivo no teatro.
Mas o telão está ali no canto do palco para além disso. Pode-se fazer a leitura desse elemento como uma referência a tudo o que o teatro enfrentou durante os anos de isolamento rígido da atual pandemia. Todos tivemos de correr para o meio audiovisual e mostrar os espetáculos assim, em telas, telas e mais telas. O telão do Sobrevento está ali talvez para nos fazer rir disso. Um riso incômodo. Tudo acontecendo ali ao vivo à nossa frente, em teatros do Sesc que nem são tão grandes assim, mas nosso olhar foi treinado na pandemia para se fixar nas telas. É quase um humor cáustico a presença do telão. Um elemento risível a mais nessa história de resistência do Sobrevento e, por extensão, de todos nós.
O rigor técnico a que me referi acima não engessa o espetáculo. Há espaço para o humor também no que tange ao trabalho dos atores com a manipulação dos bonecos. Cito como exemplo a cena em que o oriental vai partir a madeira em dois pedaços. A mão do manipulador surge para a plateia e faz todo mundo rir do inesperado – o truque brechtianamente revelado.
Menciono aqui também, sem dar spoiler, a incrível ideia de fazer o final da peça com a participação de alguém da plateia. A pândega aí se instaura sem mais nenhum pudor. A solução para o sumiço do Sobrevento por 20 anos, enfim desvendado, é hilária, o cume do deboche. Com figurinos brilhosos (João Pimenta), remetendo a estéticas mais populares, os atores surgem à boca de cena – e mais não posso contar, para não estragar o final. Cantando e tocando, com uma energia contagiante (trilha de ninguém menos do que Arrigo Barnabé), o Sobrevento se despede, não sem antes declarar todo o seu amor para a plateia, na letra da canção de encerramento: “O melhor do teatro é o que vemos daqui.” Ah, que lindo – quem resiste?
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