Do que é capaz o teatro… Essa frase povoou meus pensamentos durante toda a duração do espetáculo Um Dia, Um Rio, em cartaz só por mais dois domingos (e quatro sessões, duas por domingo) no auditório do terceiro andar do Sesc Pinheiros, em São Paulo. Um mero pano cor de lama faz todo um espetáculo brotar, florescer, encantar. Sim, o teatro não precisa de muito para acontecer, para ser teatro. Já disseram isso melhor do que eu. Aqui, basta um pano cor de lama e toda a tragédia de matar um rio está posta, cravada dolorosamente em nosso peito com toda a eloquência da arte. O espetáculo é todo permeado por esse pano, surgido da cenografia e figurinos de Kleber Montanheiro. No início, os atores já estão no palco, cobertos pelo pano lamacento, sem que o público se dê conta. Antes de os atores se revelarem, um magnífico efeito de iluminação (o desenho da luz é de Gabriele Souza) dá volume e nuances para essa cena inicial, remetendo a uma tela viva de pintura. É de arrepiar de lindo e triste. Que coragem começar assim um espetáculo para público infantil.
Esse musical infantojuvenil, montado pelo paulistano Grupo 59 de Teatro e dirigido por Fabiano Lodi, é uma criação inspirada no livro homônimo de Leo Cunha e André Neves, sobre o desastre ambiental que destruiu a Bacia do Rio Doce (MG), em 2015, por puro desleixo criminoso de mineradoras. Contou com a colaboração de Bruno Gavranic na dramaturgia coletiva. Um Dia, Um Rio dá prosseguimento à pesquisa do Grupo 59 (O Gato Malhado e a Andorinha Sinhá, de Jorge Amado, e Histórias de Alexandre, de Graciliano Ramos) sobre a transposição da literatura para o palco. Eles chamam muito lindamente de “fricção entre literatura e teatro”. Como são bons nisso… Pela terceira vez (terceiro espetáculo), constatamos.
A força do teatro narrativo desta vez está na resposta à seguinte pergunta: E se a gente pudesse conversar com um rio? Assim, os cinco integrantes do afinado elenco – Carol Faria, Jane Fernandes, Nathália Ernesto, Gabriel Bodstein e Fernando Vicente – brincam em cena de serem rios, desde a sua forma inicial de riacho. É uma grande escolha cênica e narrativa, pois essa voz plural e diversa engrossa as caudalosas histórias que se perfilam diante de nós, embaladas com a ajuda da música, outro ponto forte e decisivo nas montagens do Grupo 59. Muito do que se quer dizer na peça está brechtianamente contido na letra de suas incríveis canções, com direção musical da premiada dupla Felipe Gomes Moreira e Thomas Huszar. Impossível não se impactar, por exemplo, com o efeito avassalador dos versos ágeis, narrando a velocidade de um rio tragando tudo, arrastando tudo. Ou seja, uma canção para o momento exato da tragédia. “O rio saiu do faz de conta e está levando o que encontra.” Que verso primoroso.
Claro, por força do enredo e do episódio real no qual se inspirou, acaba prevalecendo nos ritmos um tom de lamento, de toada fúnebre, de réquiem para um rio. Algo como um grito de socorro musicado. Essa trilha bem pensada inunda o público com uma tristeza contundente (teatro para crianças também pode conter tristeza), mas permeada de ternura e de esperança. Afinal, só pode haver algo de podre no reino do teatro infantil quando a peça não desperta algum tipo de esperança na plateia. “Tem gente que acredita que eu não morri, apenas estou me guardando para quando outra correnteza chegar”, diz o rio, ao final. Lindo ensinar desde cedo para o público mirim que novas correntezas sempre vêm. Basta esperar. “Eu nasço de novo, mesmo que eu morra amanhã.” E mais: “Se as flores nascem no deserto, se água brota de rocha, se luz surge da escuridão, eu voltarei a ser um rio um dia.” Ah, a esperança que comove, ao se refletir nos olhos de uma criança da plateia.
O texto não perde a chance de brincar de trocadilhos com o tema da peça. Sempre um recurso vivo e divertido. “Vida não é água parada, não”, por exemplo. E brincadeiras de infância são evocadas o tempo todo no palco, enchendo de leveza um enredo de natureza tensa. Amarelinha, bola de gude, pique-esconde, corre cutia, bobinho… E vamos brincar de prender a respiração embaixo d´água? E vamos brincar de fazer pedra repicar na superfície do rio? Essa última, aliás, é uma graça de cena, muito bem pensada e executada, sem que haja de fato pedras reais em cena. Um tambor auxilia na sonoplastia. A força da imaginação é evocada o tempo todo e funciona muito bem.
Personagens ribeirinhos e seres encantados também surgem em cena, como um sapo que canta reggae ou a linda representação de uma cobra, a Filó, feita ao mesmo tempo por três atores perfilados. Que bela concepção. É hora de procurar, nas margens do rio agonizante, algum sinal de sua glória. Essa cena memorialística é a cereja do bolo na encenação, muito tocante e envolvente. Havia a mercearia, um terreiro, o campinho de futebol, o apito do trem ao longe, os vizinhos, o bode que andava com os cachorros… Agora nada mais há, a não ser “lágrimas de minério” a caminho do mar. Um Dia, Um Rio é um poema encenado pelo Grupo 59. Por extensão, fala de perdas, todas as perdas pelas quais a vida nos faz passar. E por isso, mais do que retratar uma tragédia específica, consegue a proeza de ir além e descrever a vida com seus ciclos, lembrando-nos a todos de que, como na Bacia do Rio Doce, há aldeias morando submersas dentro de nós.
SERVIÇO
Um Dia, Um Rio. Grupo 59 de Teatro. Dias 03, 10 e 17 de dezembro de 2023. Domingos, às 15h e às 17h. Duração: 60 min. Classificação: Livre (indicado para crianças a partir de 4 anos). Local: Sesc Pinheiros. Auditório (3º andar). 98 lugares. Rua Pais Leme, 195 – Pinheiros, São Paulo. Tel.: 11 3095-9400 Ingressos: R$ 30 (inteira), R$ 15 (meia-entrada) e R$ 10 (Credencial Plena do Sesc) – crianças até 12 anos não pagam.
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