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Em “Codinome Daniel”, o diretor Zé Henrique de Paula retrata o ativismo político sob a perspectiva intimista e existencial do protagonista

O novo espetáculo do Núcleo Experimental enfoca o sociólogo Herbert Daniel, figura importante na luta contra a ditadura e pelos direitos da comunidade LGBTQIAPN+, em montagem que encerra “Uma Trilogia para a Vida”

Crítica Por Dirceu Alves Jr.

O diretor Zé Henrique de Paula despontou nos palcos paulistanos na segunda metade da década de 2000 com os espetáculos R&J, Mojo, Cândida e O Livro dos Monstros Guardados, junto ao seu grupo, o Núcleo Experimental. Ao longo dos anos de 2010, o encenador diversificou sua produção em títulos, como Preto no Branco (2014), Urinal – O Musical (2015) e Ou Você Poderia me Beijar, que, também lançado em 2014, intensificou a pesquisa em torno da comunidade LGBTQIAPN+. O assunto seria tratado ainda em dois outros exemplos mais recentes, o conjunto de monólogos Eu Sei Exatamente Como Você se Sente (2018) e A Herança, bem-sucedido projeto do ator Bruno Fagundes, comandado por Zé Henrique no ano passado fora da companhia.

Um estreitamento, dentro da mesma temática, foi iniciado em 2017 com o drama musical Lembro Todo Dia de Você, dirigido por Zé Henrique a partir da criação de Rafa Miranda e  Fernanda Maia, parceira em diversos trabalhos há duas décadas. Neste espetáculo, um rapaz soropositivo (interpretado por Davi Tápias) reconstitui experiências do passado em busca de um melhor entendimento de como poderá ser o seu futuro. Cinco anos depois veio Brenda Lee e o Palácio das Princesas, outro trabalho do encenador escrito por Fernanda, que teve composições musicais assinada por Miranda. Desta vez, temporadas lotadas no intimista teatro do grupo, na Barra Funda, abriram espaço para apresentações em salas maiores, inclusive nos festivais de Curitiba e de São José do Rio Preto, atingindo plateias de mais de 1.000 espectadores.

O enfoque em torno da biografia de Brenda Lee (1948-1996), considerada o anjo da guarda das travestis na década de 1980, muitas delas infectadas pelo HIV, rendeu um espetáculo de repercussão alinhado às relevantes discussões em torno da representatividade. Um dos pontos altos foi a atuação da artista cearense Verónica Valenttino na pele da protagonista, que fez dela a primeira trans reconhecida com o Prêmio Shell de melhor atriz.

Em comum, Lembro Todo Dia de Você e Brenda Lee e o Palácio das Princesas tratam de um assunto que até pouco tempo, inclusive na ficção, era tratado como sentença de morte ou cercado de contornos trágicos. A abordagem do HIV nestes dois espetáculos não se configura ingênua ou foge de um mínimo realismo, entretanto, não é triste, soturna, como se fosse um epílogo da vida daqueles personagens. A descoberta da doença surge associada a uma nova compreensão da existência e como um caminho de luta e reafirmação da identidade pode ser desenhado a serviço da coletividade.

Não à toa Zé Henrique de Paula estreou Codinome Daniel no último dia 12 no Teatro do Núcleo Experimental afirmando que se trata da conclusão do que ele batizou de Uma Trilogia para a Vida, reunião de peças com discussões e pontos de vista sobre a Aids no Brasil nas últimas quatro décadas. Codinome Daniel, com dramaturgia, direção cênica e letras de Zé Henrique e direção musical e composições originais de Fernanda, reaviva a memória de um importante e pouco lembrado nome da história recente, o sociólogo e ativista político Herbert Daniel (1946-1992). Ele morreu devido às complicações do HIV não sem antes lutar pelos direitos das pessoas infectadas. Um pouco mais deste personagem pode ser visto na série Betinho – No Fio da Navalha, inspirada na biografia de Herbert de Souza (1935-1997), lançada pelo Globoplay em dezembro, interpretado pelo ator Ed Moraes.

Nascido Herbert Eustáquio de Carvalho, o mineiro de Belo Horizonte se criou como um jovem introspectivo que encontrou nos livros a melhor companhia em uma família que, apesar de encabeçada por pai e mãe amorosos, não o deixava à vontade para desenvolver sua personalidade. Engajado na luta armada, ele enxergou o preconceito da militância esquerdista quanto à homossexualidade, que era considerada por alguns companheiros como um “desvio moral pequeno-burguês” diante de tantos acontecimentos no Brasil do final dos anos de 1960.

Herbert, que na guerrilha era conhecido como Daniel, integrou organizações como a VAR Palmares e a VPR e teve estreia ligação com o militar desertor Carlos Lamarca (1937-1971). É justamente em 1971, logo depois da morte de Lamarca, que Zé Henrique centraliza o fio condutor de sua dramaturgia, surgida a partir da leitura da biografia Revolucionário e Gay: A Extraordinária Vida de Herbert Daniel, escrita pelo historiador e brasilianista norte-americano James Green.

Escondido dos militares, Herbert Daniel (interpretado por Davi Tápias) vivia sozinho em uma casa no Rio de Janeiro onde não podia despertar a atenção de ninguém. Nada de janelas abertas ou luzes acesas e tampouco acionar o barulho de torneiras ou da descarga da privada. Qualquer vestígio de ocupação do aparelho – como eram chamados estes lugares de confinamento – chamaria a atenção dos vizinhos e colocaria em risco sua segurança.

Na clausura, ele bota a imaginação para funcionar e reencontra hipoteticamente vários de seus amigos – alguns conhecidos do público. Por lá, aparece a colega de escola Wanda (vivida por Luciana Ramanzini), que, capturada pela repressão e sob tortura, não entregou qualquer informação aos algozes. A personagem é a representação da futura presidente da República Dilma Rousseff. A militante Iara Iavelberg (1944-1971), companheira de Lamarca, de quem não teve a chance de se despedir antes da morte, interpretada pela atriz Lola Fanucchi, é outra que conversa com Daniel. Em uma cena de grande sensibilidade, é retomado o debate em torno do seu assassinato, divulgado na época como suicídio.

Estas incursões poéticas estabelecem um interessante contraponto em Codinome Daniel, que amenizam o peso político da montagem sem esvaziá-la. Zé Henrique acertou na escolha de retratar o sangrento período da ditadura militar sob a perspectiva intimista e existencial do protagonista e daqueles que o cercaram. Recurso importante para não comprometer a narrativa histórica é a presença do ator Fabiano Augusto, que, na pele do biógrafo James Green, dialoga com o público e localiza o contexto de grande parte das ações do espetáculo.

É neste mesmo aparelho que Daniel conhece Cláudio Mesquita (papel de André Loddi), por quem se apaixona e, finalmente, pode se entregar a sua sexualidade. Os dois seguiram para o exílio em Paris, em 1972, e retornaram ao Brasil uma década depois. Daniel recebeu o diagnóstico de soropositivo ainda no final dos anos de 1980 e travou uma batalha pública para reverter a imagem funesta associada aos doentes de Aids, liderando articulações políticas para a importação do AZT, remédio fundamental no tratamento no vírus.

Zé Henrique de Paula é um raro diretor que consegue equilibrar os cuidados com a dramaturgia, a encenação e o comando dos atores e atrizes. Em Codinome Daniel, o seu domínio técnico reverbera em todo o conjunto do espetáculo, mesmo que a cena inicial, um número musical com todo o elenco mais associado ao teatro de revista, se torne um elemento estranho, felizmente, logo esquecido. O ator Davi Tápias comprova surpreendente amadurecimento na composição do exigente protagonista. A postura encurvada, o sutil sotaque mineiro, o olhar tímido e as modulações da voz transmitem as diferentes fases do ativista político e social.

Luciana Ramanzini é outro destaque, atestando versatilidade, seja como a zelosa mãe ou como a guerrilheira Wanda. De caráter mais introspetivo e não menos marcante é o trabalho de André Loddi, que, sutilmente, se impõe em cena mesmo com um número menor de falas fortes pela presença ao lado do companheiro, tanto nas cenas que pedem alguma sensualidade como nas mais dramáticas.

Além de Fabiano Augusto e Lola Fanucchi, o extenso elenco se completa com os atores Renato Caetano, que vive, entre outros, Gê, o pai do protagonista, Cleomácio Inácio e Paulo Viel em participações pontuais e cinco músicos que executam ao vivo a trilha sonora original em piano, bateria, contrabaixo, clarinete e violoncelo. Sustentada pela potente iluminação de Fran Barros, a cenografia criada por César Costa, além de bonita e funcional, se mostra bastante versátil por se transformar em diferentes ambientes no decorrer da montagem, como a casa da família, o aparelho repressivo ou uma sauna gay.  Os figurinos, assinados por Úga Agú e Zé Henrique, se não surpreendem, ilustram o esperado para as vestimentas das épocas que cruzam a trama.       

Com Codinome Daniel, Zé Henrique de Paula e o Núcleo Experimental fecham Uma Trilogia para a Vida. Mais que um trio de peças em torno de uma abordagem de temas comuns, o conjunto promove o diferencial de, principalmente em Brenda Lee e o Palácio das Princesas e a nova montagem, trazer à tona biografias de personagens que precisam ser mais conhecidas sem ficar limitado ao eixo do teatro documental. Com os recortes de Brenda Lee e Herbert Daniel, o Núcleo Experimental coloca em cena batalhas que extrapolaram o campo comportamental para se tornarem serviços de utilidade pública e salvar – ou, pelo menos, prolongar – a história de muita gente.

Nota: As informações e opiniões contidas neste artigo são de inteira responsabilidade de seu/sua autor(a), cujo texto não reflete, necessariamente, a opinião do INFOTEATRO.     

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Sobre
Dirceu Alves Jr.

Dirceu Alves Jr.

É jornalista, escritor e crítico de teatro, trabalhou em Zero Hora, IstoÉ Gente e Veja São Paulo e publicou os livros Elias Andreato, A Máscara do Improvável (Humana Letra) e Sérgio Mamberti, Senhor do Meu Tempo (Edições Sesc).

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