Assim como Tarsila do Amaral (1886-1973), a atriz e bailarina Claudia Raia, com as devidas proporções, precisou travar uma revolução para ser Claudia Raia. A garota, criada dentro de uma academia de dança, coordenada pela mãe, Odette Motta Raia (1923-2019), no interior paulista, não se contentava com o que lhe era oferecido. Queria ganhar os palcos, de preferência os do mundo. Queria dançar sim, mas também ser atriz e brilhar em um gênero de pouca tradição no Brasil, pelo menos na linha em que ela sonhava, os musicais.
Claudia, antes da maioridade, estudou e dançou balé nos Estados Unidos e na Argentina e, de volta ao Brasil, estreou no musical A Chorus Line (1983). Chegou rapidamente à televisão nos esquetes do programa Viva o Gordo, estrelado por Jô Soares (1938-2022), emplacou uma novela atrás da outra na Globo e provou ser comediante no humorístico TV Pirata, no final dos anos de 1980. Só que o negócio de Claudia era o palco, quer dizer, os musicais, e, aos poucos, cavou espaço em comédias em que atuava, cantava e dançava até conseguir alçar o próprio voo.
Na década de 1990, Claudia mostrou ser diferente em Não Fuja da Raia (1991), Nas Raias da Loucura (1993) e Caia na Raia (1996), produções na linha do teatro de revista em que exibia o brilho de vedete e o dom da comunicação como o brasileiro se desacostumara a ver. De uma geração de atrizes conceituais, ela usava plumas, maiôs cintilantes e saltos altos para garantir que aquele era o seu show. Com o começo do investimento dos musicais brasileiros derivados da Broadway, a artista enxergou mais próximo o seu sonho lá da infância. O Beijo da Mulher Aranha (2000), Sweet Charity (2006) e Cabaret (2011) firmaram Claudia de vez como intérprete, bailarina e, logo em seguida, produtora.
Se o Brasil já era capaz de levantar bons musicais, a grande estrela do gênero só podia ser Claudia Raia, a fusão do estilo norte-americano com a identidade nacional. Espontânea e vocacionada para o trabalho pesado, Claudia une humor e disciplina, ousadia e persistência para colocar em cena o que deseja. E, assim, se seguiram Crazy for You (2013), Raia 30 (2015), Cantando na Chuva (2017) e Conserto para Dois (2019), sem falar em Chaplin, o Musical (2015), em que ela não subiu ao palco, mas catapultou a produção para que todos enxergassem o talento de Jarbas Homem de Mello, seu companheiro desde 2012.
Muitas vezes, Claudia foi duramente criticada, teve a vida exposta na mídia e, nos últimos anos, sentiu seus calos esmagados, como parte da classe artística, ao ter questionada a seriedade do seu ofício. Tudo isso serviu, sem dúvida, para Claudia Raia chegar até Tarsila do Amaral. Idealizado e protagonizado pela atriz, o musical Tarsila, a Brasileira, em cartaz no Teatro Santander, em São Paulo, é, claro, uma releitura biográfica da pintora modernista. O que é visto, no entanto, é a batalha de uma mulher e artista para ter sua voz ouvida e os percalços enfrentados – mesmo ostentando uma condição privilegiada – para tomar as rédeas de sua história e ser respeitada.
Sob a direção de José Possi Neto, Tarsila, a Brasileira tem texto e letras de Anna Toledo e Possi, músicas de Guilherme Terra e Tony Lucchesi e coreografias de Alonso Barros. A dramaturgia situa Tarsila recém-chegada de uma temporada de estudos na França, aspirante a pintora, curiosa para saber o que foi a tal Semana de Arte Moderna, realizada há pouco em São Paulo. Ela recebe em seu ateliê a pintora Anita Malfatti e os escritores Oswald de Andrade, Mário de Andrade e Menotti Del Picchia – interpretados por Keila Bueno, Jarbas Homem de Mello, Dennis Pinheiro e Ivan Parente. O trio de intelectuais a coloca a par da situação e, junto da Tarsila de Claudia, o espectador é abastecido das informações para entender o movimento de 1922.
É sempre importante contar bem uma história, talvez até explicar – e isso não tem nada a ver com didatismo. A dramaturgia de Anna e Possi valoriza o espectador que pode ter pouca ou nenhuma informação sobre os personagens e o período. Ao mesmo tempo, não satura aquele que se senta na poltrona com relativa bagagem. A exuberância de Claudia pode até contrastar com as memórias da mulher interiorana, preocupada com o que os outros vão falar e pouco à vontade no romance com Oswald de Andrade, afinal, ela ainda era oficialmente casada. Mas, nesses momentos, é a personalidade de Claudia, assim como suas experiências, se impondo e contribuindo para que uma simbiose entre as duas resulte em uma terceira personagem. É bem-vinda a impressão digital da artista. Afinal, ninguém deve esperar chegar ao teatro e encontrar uma reconstituição fiel dos tipos verídicos, como se fosse um documentário.
Tarsila, então, se descobre, a pintora das temáticas brasileiras, a criadora do Abaporu, sua tela clássica, uma das idealizadoras do Movimento Antropofágico. É celebrada em Paris e pisoteada no Brasil. Vê o casamento com Oswald de Andrade naufragar diante da presença da jovem Pagu (vivida por Carol Costa) e, com a crise econômica de 1929 e a derrocada do café, Tarsila perde sua fortuna. Confrontada com uma realidade desconhecida desse mesmo Brasil, ela começa uma virada em sua vida que também dá início a outra na dramaturgia.
É a vez de Tarsila, a pintora das cores brasileiras, assumir a identidade do povo do seu país em telas inspiradas no cotidiano popular e de conotação política. O presidente Getúlio Vargas começa a mostrar a sua faceta de ditador e não gosta nada disso. A artista visita Moscou e assina o passaporte de comunista que o governo queria tanto lhe imprimir. É presa, sofre represálias, batalha pelo seu sustento e até descobre um novo amor, o jornalista Luís Martins (representado por Reiner Tenente), 24 anos mais novo, com quem fica por quase duas décadas.
Uma existência épica, de quase 90 anos, é contada em menos de três horas, e o que se vê literalmente é um espetáculo. Como tudo o que se espera de José Possi Neto, Tarsila, a Brasileira é muito sofisticado, vigoroso e, com um ritmo surpreendente, cativa até aqueles que podem ser pouco ligados ao teatro. Os figurinos, criados por Fábio Namatame, enchem os olhos, e a cenografia, idealizada por Renato Theobaldo, útil e requintada ao mesmo tempo, conduz o espectador às diferentes fases da narrativa sem parecer ostentatória. Até a sociedade paulistana que criticava Tarsila aprovaria o espetáculo.
Jarbas Homem de Mello, ótimo ator e bailarino, é destaque natural como Oswald de Andrade. Ele administra bem o sarcasmo do poeta na maior parte da ação e atinge o ápice ao trazer à tona os rancores e as frustração de quem foi bem menos festejado em vida do que esperava. São de grande intensidade suas cenas com Dennis Pinheiro, que interpreta Mário de Andrade e traz ao espetáculo discussões importantes como preconceito racial e homofobia. Keila Bueno convence plenamente como Anita Malfatti, principalmente quando salienta a rivalidade com a amiga Tarsila. Mais versátil do elenco central, entretanto, é Ivan Parente, que vai da ambiguidade do poeta Menotti Del Picchia até diversas participações pontuais, como o poeta e dramaturgo francês Jean Cocteau e o simplório Valdemar.
Independentemente da qualidade das suas outras produções, é inegável que Claudia sempre priorizou espetáculos que garantissem mais a diversão que a reflexão – e não há demérito nisso. Em Tarsila, a Brasileira, porém, percebe-se uma considerável diferença. A atriz aparece disposta a contribuir para a formação cultural de seu público e mostra a ele a trajetória de nomes célebres na construção do imaginário nacional que começou a ser arranhada na última década. O número de encerramento é um manifesto, como se fosse um samba-enredo, em que o elenco enfileira e homenageia grande parte dos maiores nomes da cultura nacional, emocionando facilmente a plateia. Melhor tradução não há.
Tarsila, a Brasileira aparece como um diferencial no currículo de Claudia Raia. A menina que sonhava em brilhar nos musicais da Broadway – e brilhou em várias versões nacionais deles – enxergou que era a hora de falar dos seus e, quem sabe, até dar uma resposta política a quem tanto detrata a ela e aos colegas. Com Tarsila também foi assim e talvez sempre será. Só que não importa. Eles todos passarão – mesmo substituídos por outros. Os artistas não, porque muitos deles são únicos, e Claudia fez a sua parte para que, pelo menos, os modernistas continuem lembrados e respeitados.
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