Existem alguns casos no teatro em que o nada se transforma em tudo. Quadrante, de Paulo Autran (1922-2007), e A Alma Imoral, de Clarice Niskier, são exemplos de solos em épocas distintas que alcançaram tal façanha. Todas as Coisas Maravilhosas, texto dos ingleses Duncan MacMillan e Joe Donahue, protagonizado por Kiko Mascarenhas e dirigido por Fernando Philbert, pode ser incluído neste seleto time. Para entender, corra ao Tucarena, em São Paulo, onde a montagem é apresentada até junho, quase cinco anos depois da estreia, no Rio de Janeiro. Nos dias 26 e 27, o artista poderá ser visto no Teatro Zé Maria, dentro da programação do Festival de Curitiba.
Um ator, de tênis, vestindo calça jeans, camiseta e um casaco de malha, ocupa o palco, diante de duas cadeiras e iluminado por uma luz branca que não sofre qualquer alteração em quase 80 minutos. Nada de cenário, nenhum efeito ou projeção. A diferença, neste caso, é que, apesar de definido como um solo, o protagonista, em grande parte do tempo, encontra companhia. Ele contracena com um elenco recrutado na plateia que representa todos os personagens secundários da história. Neste jogo, consiste o grande fascínio do espetáculo, que se transmuta a cada noite de acordo com estas interações, e, como na vida, tudo pode acontecer, exigindo de Mascarenhas domínio para contornar qualquer situação.
Sim, Todas as Coisas Maravilhosas é uma peça em que você, espectador, tem grandes chances de participar. Não há nada de imposto ou agressivo, pelo contrário, a condução de Mascarenhas é tão delicada e evolui para uma intimidade rara que, aos poucos, mesmo quem não entra em cena começa a pensar como seria bom se o destino lhe abrisse a oportunidade. Na ficção, seja na literatura, no cinema, no teatro ou na televisão, é muito difícil não se sensibilizar com as tramas que envolvem crianças e vem daí o primeiro dos pactos criados entre o ator e o público. Ninguém tem coragem de recusar uma brincadeira com aquele menino interpretado por Mascarenhas.
Um garoto de 7 anos é surpreendido pela presença do pai na hora da saída da escola. Ele foi buscá-lo porque a mãe acabou “se machucando” e precisou ser internada às pressas em um hospital. O menino entende que a mãe caiu derrubada pela tristeza e, como forma de reanimá-la, começa a espalhar bilhetinhos pela casa, listando coisas deliciosas do cotidiano que podem lhe devolver a alegria. Tomar um sorvete, andar de montanha-russa, dormir até tarde, enfim, detalhes simples, mas que, na sua opinião de moleque, fazem aquele dia, mais um dia, valer a pena.
Na história de Duncan MacMillan e Joe Donahue, o menino vira adolescente e, aos 17 anos, fica revoltado com uma nova tentativa de suicídio da mãe, o que não o impede de escrever novas listas exaltando os prazeres de caminhar na chuva, comer um pão de queijo ou ouvir a banda Blitz cantar Você não Soube me Amar. Ele entra na faculdade, se apaixona, se forma, se casa, deixa São Paulo para morar e trabalhar no Rio de Janeiro, se separa, sempre convivendo com a depressão da mãe e o medo de que ela recorra novamente a uma dose excessiva de comprimidos.
A lista ganha novos itens e já beira um milhão de ideias motivacionais. Vai dos 7 aos 59 anos – a idade de Mascarenhas na atualidade. Até o dia em que descobre que, na verdade, estas listas servem para segurar a onda dele mesmo. Cada vez mais introspectivo, difícil de conviver, o personagem precisa se convencer das maravilhas da vida e não se entregar à melancolia herdada da mãe.
O inglês “play”, traduzido para o português, significa jogar, brincar e até peça de teatro. Engolido por ideias cerebrais, conceituais ou contestatórias, o teatro da atualidade tem se esquecido de envolver o espectador no lúdico, na reconexão com uma certa alma infantil. O tema, claro, é triste, denso, pesadíssimo. Todas as Coisas Maravilhosas é uma peça que fala de depressão e suicídio, mas também de transformação da realidade, de esperança e superação. Lá pelas tantas, Mascarenhas diz: “Se você pensar em suicídio, não faça isso, porque as coisas melhoram. Pode ser que elas não estejam maravilhosas agora, mas elas melhoram”.
Quem está na plateia, ouve isso e pode acreditar. Seca a lágrima que rolou e presta mais atenção no menino que já deve ter seus 30 e tantos anos, mas ainda é visto como se tivesse 7. Este jogo proposto na encenação comandada pela mão sutil de Philbert, mas capaz de resultados imensos, faz com que, desde o início, os temas abordados ali não fiquem tão duros e sejam vistos sob um ponto de vista sem preconceitos, próximos aos do de uma criança.
Por isso, não é constrangedor quando Mascarenhas chama um homem para representar o veterinário do cachorro do seu personagem ou convoca outro sujeito para fazer as vezes do menino e do pai em cenas que não são exatamente curtas e simples. Um maior despojamento é exigido da espectadora que fica responsável pelo papel de Samantha, a namorada que virou noiva e mulher do protagonista, por causa de uma presença mais constante, mas sempre delicada e respeitosa em cena. E, quem não sabe brincar, por favor, não desça para o play.
Muito se fala do esgotamento de um teatro convencional. Para muitos, não há mais sentido em se apresentar em um palco italiano que naturalmente estabelece um distanciamento entre artista e plateia. Há, pelo menos, cinco décadas se prega que as dramaturgias clássicas morreram e as encenações procuram surpreender com discursos e efeitos – muitas vezes, em cima destas dramaturgias clássicas – que mais confundem os pagantes que os provocam.
Em Todas as Coisas Maravilhosas, Mascarenhas e Philbert quebram todas as convenções. Quando as portas do Tucarena se abrem, o ator já está ali, entre as cadeiras, cumprimentando as pessoas, abraçando alguns e até tirando fotos com outros. Primeiro ponto, o protagonista já conquistou pela humanidade, afinal, muitos podiam imaginá-lo concentrado no camarim até ouvir o terceiro sinal. A peça começa, Mascarenhas vai dando voz ao menino e, quebrando de vez a quarta parede, começa a trazer o espectador para a cena. Todos pensam, não existe mais teatro, o que rola aqui, nesta peça, é vida real. Deve ser a própria história pessoal do Kiko Mascarenhas – afinal, estamos na era da autoficção. Não, não, tudo ali é mentira, é teatro, não é a vida do artista.
E, assim, Philbert e Mascarenhas, do alto das suas experientes carreiras, brincam com o público, iludindo saudavelmente cada um que saiu de casa para ser enganado pelas situações de uma boa peça – a ponto de alguns, quem sabe, até se considerarem um pouco atores depois da experiência. Uns choram ao ouvir uma canção de Lulu Santos, cantarolam trechos de Only You, dão risada ao ver o boneco Topo Gigio (ratinho que virou febre infantil nos anos de 1970) e, em meio a essas referências, se lembram naturalmente de suas dores, das de seus familiares ou amigos. O ator, respeitando o texto dos autores, nocauteia a plateia: “Se você tiver uma vida longa e se não sentir profundamente deprimido pelo menos uma vez é que você não prestou atenção nela”.
Todas as Coisas Maravilhosas é, pensando bem, uma peça sobre a vida e faz toda a diferença o seu encerramento ao som da canção What a Wonderful World na versão roqueira de Joey Ramone (1951-2001) em detrimento da mais conhecida de Louis Armstrong (1901-1971), com um pé na melancolia. O público sai do teatro feliz, para cima, querendo dançar, alguns chorando, mas lavando a alma. Viva o teatro, uma destas coisas maravilhosas da vida, quando cumpre o seu papel de baixar a guarda do espectador e deixá-lo embarcar no jogo de ilusões. Pode parecer pieguice o desfecho deste texto, sentimento exacerbado, mas, de vez em quando, se permitam, porque faz bem.
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