Uma das lembranças mais fortes de quando comecei a fazer teatro após sair da universidade foi a sensação concreta e nada mística de que sobre a minha cabeça havia um espaço enorme e vazio. Recordo-me de que estava parado no palco antes da cortina se abrir e começar a peça, e tive a certeza de que acima de mim havia muita coisa até que se chegasse finalmente a vara de refletores. E para além da vara de refletores um contrarregra trabalhava para fazer subir e descer cenários. E acima dele, desta figura invisível ao espectador e que nós, atores, só conseguíamos vislumbrar os movimentos, existia ainda mais espaço, uma metragem ainda mais extensa e vazia até que o teto do edifício finalmente delimitasse um dentro e um fora.
Enfim, era uma sensação pavorosa de pequenez que, de alguma maneira, eu precisava preencher com uma energia superlativa para dar conta de frequentar aquele território artificioso que escolhi como território da minha profissão. O que quero dizer é que desde o primeiro momento em que pisei num palco de teatro eu fui confrontado com essa força arquitetônica que me endereçava algo muito importante, e que, parece, anda em desuso: o meu charme pessoal, o meu eu, a minha história, a minha mensagem, o meu empoderamento de nada serviria para dar conta de aparecer ali; era necessário, ao contrário, emprestar outro tipo de voz, outro tipo de tensão corporal, outro tipo de inteligência que me permitisse sobreviver àquilo.
Nunca entendi quem chama o teatro de “minha casa”, ou, o “lugar onde eu me encontro”, onde me “sinto bem”. Para mim, desde sempre – e não falo isso com orgulho, mas com consciência e certa dose de desespero – o teatro sempre foi um lugar de profundos problemas, de drenagem absurda de energia, de convocação para uma jornada de difícil travessia. Não sou paraquedista – e nunca saltarei de um avião com o fim de ver o mundo em queda livre – mas, imagino, esse instante que antecede o erguer da cortina em um palco de teatro é, para mim, recheado da mesma dúvida que um paraquedista deve ter quando a porta do avião se abre rumo ao abismo.
É por isso que para mim o edifício do teatro é importante, por isso que gosto de fazer teatro em um teatro, por isso que adoro o palco, a cortina que separa o palco da plateia, os urdimentos e refletores, porque tudo isso que há dentro de um teatro me faz lembrar de que o meu protagonismo pessoal estará sempre condicionado à imagem reduzida do que represento diante de tanto espaço que há entre mim e o mundo. O mundo é um palco, repete reiteradamente Shakespeare. Se quisesse jogar purpurinas em nossas vaidades ele teria botado no papel: o mundo são os atores, o mundo sou eu, o mundo é você que aplaude o meu especial direito de existir.
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