“Parto Pavilhão”, que em esteve em cartaz no TUSP, usou o caso real da fuga de nove detentas do Centro de Progressão Penitenciária (CPP) Feminino do bairro do Butantã, em São Paulo, para dar à luz a personagem Rose Silva (Aysha Nascimento). Ex-técnica de enfermagem, mãe e encarcerada, ela se tornou um tipo inverso de fada madrinha. Não realiza desejos, mas como parteira do presídio, inspira uma liberdade e independência que os muros não conseguem conter; sonha, sente prazer, se apaixona. Para além da detenção, quem é Rose? O que faz ou gosta?
As perguntas que gestaram o monólogo “Parto Pavilhão” foram instigadas por “Seis propostas para o próximo milênio”, do escritor Ítalo Calvino. No livro, o autor buscou nos mitos gregos a base de sua teoria sobre a necessidade de tratar temas dramáticos com leveza. O fio que separa a delicadeza da superficialidade parece curto. Calvino se defende com o verso do poeta Paul Valéry: “É preciso ser leve com o pássaro, e não como a pluma”.
Se o céu de “Parto Pavilhão” começou nublado, o voo estava cheio de beleza. A luminosa interpretação de Aysha Nascimento, munida de uma direção criativa e minimalista de Naruna Costa, encontrou flores no ninho de Rose, muito bem regadas pelo desenho de luz de Gabriele Sousa. A personagem é carismática, engraçada e enérgica. E Aysha aproveitou-se do texto, escrito por Jhonny Salaberg, para criar o conto de fadas de Rose com leveza. A trilha ao vivo balizou a movimentação da personagem e adicionando uma dose de realismo fantástico ao tema, criando espaço para que o público se encantasse com a encenação sem esquecer o lugar onde a protagonista estava.
De certa forma, a teoria de Calvino pode ser vista em “Conforto”, que fez temporada no Sesc Pompeia e Itaú Cultural. Escrita, dirigida e protagonizada por Ana Flavia Cavalcanti, na peça nós vemos um tipo de prisioneira. Não do cárcere, mas do sistema, do cotidiano, dos gestos opressores que aconteceram no café da manhã da casa onde a mãe da artista trabalhava. A memória é um personagem do espetáculo. A primeira cena, onde Ana Flavia interpreta uma história da mãe, Val Cavalcanti, foi duríssima de ver. Após uma saudação a Exu – a religião ganhou contornos importantes no espetáculo – a atriz permaneceu sentada na lateral do palco, em meio aos outros espectadores, enquanto fora exibido o relato autobiográfico no telão, o que só acentuou a carga da encenação. Em seguida, Ana Flávia se transformou em babá, diarista e paquita. “Você conhece o conforto?”, “você merece o conforto?”, “qual foi o maior conforto que você já se deu, se permitiu?”, foram algumas das questões que atravessaram o processo criativo da atriz e perfumaram o teatro. Lua Bernardo, irmã de Ana Flavia e contrabaixista, interpretou algumas canções durante o espetáculo. Foram momentos lindos, de aproximação entre o público e a memória da artista.
No melhor momento de “Conforto”, Ana Flavia contou sobre as mais de 15 casas onde viveu, em diferentes estados e países. O humor da cena lentamente se transformou em uma delicadeza íntima, embalando essa trama pessoal na forma de um coro. A família da atriz lhe inspirou no palco, mas fora dele, o espetáculo continua refletindo os desejos de um povo. No final, após contar que agora ela vive em uma casa própria “cheia de portas”, Ana Flavia decorou uma mesa de café da manhã. O público foi convidado a estar com ela. Existiu uma delicadeza enorme nesse final, uma esperança que pede convívio, reconhecimento, contato. Tantas casas depois para que Ana Flavia achasse o seu lugar.
“Parto Pavilhão” e “Conforto” contaram histórias de mulheres negras, e protagonizadas por elas, sobre mães e filhas que talvez buscassem a definição de um estado emocional. Se nos contos de fadas, a liberdade pode ser vista como emoção ou condição, na vida real é preciso desdobrá-la em formas materiais: uma casa própria, um salário digno, férias, escola para o filho, proteção contra a violência, independência. A maternidade, o elo entre os dois espetáculos, de maneira nenhuma se apresentou como uma função confortável ou livre. Entretanto, tanto Rose Silva quanto a diarista, a babá e a paquita, foram incapazes de se render. Vai existir um lugar para caber cada desejo. Porque para elas, e tantas outras mulheres que seguem o mesmo caminho, a sensibilidade para encarar a realidade não foi só uma proposta. Ao vê-las em cena, talvez Paul Valéry escrevesse: às vezes, a leveza da vida não está nem no pássaro, nem na pluma. Mas de onde se olha o céu.
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