O Grupo Galpão estava há cinco anos sem estrear um espetáculo quando Cabaré Coragem ganhou a cena em julho passado. A última montagem dos artistas mineiros, Outros, levantada em 2018, tratava, sob a direção de Marcio Abreu, de inquietações contemporâneas que só se agravariam dali para frente. Esta meia década de lacuna foi tempo da eleição e do governo de Jair Bolsonaro, da tragédia pandêmica que se abateu sob o mundo e matou 700.00 pessoas no Brasil e de uma instabilidade política e social como há muito não se via. O que os integrantes do Galpão pensavam na hora de tocar o barco adiante? É preciso coragem!
A atriz Inês Peixoto garante que esta palavra é uma das filosofias do Galpão há muito tempo, talvez desde a sua fundação, em 1982, período de transição entre a ditadura e a democracia. “A nossa vida esquenta, esfria, mas o que ela exige de nós o tempo inteiro é que devemos ter coragem”, define. O diretor da nova montagem, Júlio Maciel, emenda, ressaltando que “aquele governo” exigiu mais do que nunca coragem, sob a concordância dos colegas.
Nas primeiras reuniões para esboçar o atual trabalho, porém, uma ideia era unânime entre a equipe. Chega de barra-pesada. Todos eles queriam um espetáculo festivo, alegre, bem-humorado, que se aproximasse do público, e ficou decidido que nada melhor que revisitar a obra do dramaturgo alemão Bertolt Brecht (1898-1956) e sua linguagem de cabaré. “Vimos que era hora de voltar a Brecht pelo momento político, para repensar o Brasil e a ascensão dessa mentalidade fascista”, explica Maciel.
É dessa forma, em um momento mais esperançoso e menos apocalíptico, que Cabaré Coragem chegou ao Festival de Curitiba, com apresentações no sábado (30) e domingo (31) no Teatro Guairinha. Da capital paranaense, a trupe segue direto para São Paulo, onde engata temporada no Sesc Belenzinho a partir desta quinta, 4 de abril. O elenco é formado por Antonio Edson, Eduardo Moreira, Inês Peixoto, Luiz Rocha, Lydia Del Picchia, Simone Ordones e Teuda Bara, que, sob a direção musical e trilha sonora de Luiz Rocha, dançam e cantam temas que não ficam limitados a obra de Brecht e do compositor Kurt Weill. A trilha sonora traz ainda canções conhecidas do público em diferentes estilos. Los Hermanos, do autor argentino Atahualpa Yupanqui, Singapura, de Eduardo Dussek, e Perigosa, sucesso das Frenéticas, são alguns exemplos.
Uma atmosfera circense completa a alma do novo trabalho com números de ilusionismo, a participação crítica de uma boneca manipulada em busca da própria voz e um quadro que mostra a superação dos limites para acrobatas que já não são mais jovens. “É um cabaré com a cara do Galpão, um cabaré com a cara de 60 +, sênior, já que todos nós já chegamos a essa idade”, brinca Maciel. Inês Peixoto ressalta a importância de ela e seus colegas enfrentarem as exigências físicas da linguagem porque representa até um combate aos limites do etarismo. “Somos uma trupe envelhecida e, quando os corpos estão envelhecendo, é necessário um enfrentamento maior porque talvez aquelas cenas não fossem mais pensadas para a gente”, declara.
Brecht está na essência do Galpão desde as origens. A Alma Boa de Setsuan foi a primeira montagem do grupo e, em 2005, foi a vez de Um Homem É um Homem, que, sob a direção de Paulo José, trata dos perigos daqueles que se deixam manipular e não conseguem dizer “não”. São três momentos distintos da História do Brasil em que as palavras do dramaturgo alemão expressaram os sentimentos dos atores da companhia.
As músicas deram o sinal verde do processo para que, na sequência, fosse construída a dramaturgia coletiva. A atriz Teuda Bara, que interpreta a Madame, aquela que explora os funcionários da casa noturna em que a trama é ambientada, confessa que, mesmo respeitado as decisões do coletivo, prefere começar seu processo individual pelo texto. Assim, a sua preparação veio da leitura das cenas de uma das mais famosas peças de Brecht, Mãe Coragem, para, na sequência, definir o que poderia e gostaria de cantar. Um fragmento deste texto é interpretado por Teuda em Cabaré Coragem, seguida de uma melancólica releitura da canção Mamãe Coragem, de Caetano Veloso e Torquato Neto. “Nesse processo chamamos pessoas experientes na linguagem de cabaré, como a cantora Cida Moreira, para um acompanhamento de uma semana”, conta Teuda. “No fim do trabalho, a gente apresentava experimentos cênicos e foi maravilhoso ter essas visões diferentes.”
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