Os muitos silêncios que compõem o espetáculo “Meninos”, em cartaz no Espaço Garganta, em São Paulo, pontuam o quanto a comunicação entre os homens é disforme. E não se pode confundir a proposta com falta de ritmo. Ao contrário, já que há nos diálogos dos personagens um medo ancorado em cada palavra, a tangenciar uma área segura para ser homem.
Na masculinidade, é comum que o dever invada outros campos da afetividade, transformando a proteção na única expressão amorosa possível. Na primeira história, dois irmãos conversam de forma despretensiosa até que um deles diz ter visto a mãe, já morta. Os três textos de “Meninos”, escritos por Lucas Mayor, Marcos Gomes e Rafael Cristiano, dialogam com “Sendo um Menino”, da pensadora Bell Hooks, cuja obra elucida como a masculinidade depende da feminilidade para florescer. As pesquisas da autora americana alcançam diversas esferas, e passam por ideias universais, como a repressão afetiva vivida pelos homens. Na primeira história, em vez de João (João Filho) ser oprimido pelo irmão (Rafael Cristiano) ao contar que vê a mãe falecida, o que se vê é um acolhimento pela fragilidade exposta de maneira tímida, mas pungente. A simplicidade da encenação – criada praticamente com figurino e luz – cria uma espécie de confessionário. O subterrâneo da cena, aquilo que os diálogos vacilantes procuram enterrar bem longe da vergonha, ficam mais puros. A raiva de não se encaixar no ideal hipermasculino cede lugar para uma trincheira de carinho.
Se “homem” é um status histórico, social e político, em muitas situações a figura do menino entra como o calibre, seja para apaziguá-los, seja para julgá-los. Ao longo do espetáculo, elementos importantes, como a cor da pele, a condição financeira ou a posição sócio cultural, ficam evidentes, mas não ao ponto de panfletar o tema. Na segunda história, por exemplo, o diálogo com a obra de Bell Hooks parece mais incisivo: a vida exigiu que eles fossem homens – ou recrutas – desde o nascimento. Um tio (Ricardo Teodoro) e o sobrinho (Lucas Laureno) falam sobre o sumiço do pai. O rap dos Racionais MC’s funciona como esconderijo ao mesmo tempo que afaga a saudade dos dois pelo mesmo homem. É uma cena forte, onde a chamada responsabilidade também ganha contornos religiosos, ancestrais.
Se nas duas primeiras partes nós vemos a vigília de um espectro racial, na última – e a mais emocionante – o passado se introjeta no futuro, criando uma ausência atemporal: em 2053, um homem vê alguém parecido com o pai e pede para que ele aja como se fosse o próprio. A cena dos dois personagens, interpretados com profunda delicadeza por Edu Guimarães e João Bourbonnais, brinca com o método da constelação familiar. Mas o que está em jogo é um tipo de acareação afetiva, uma reconstituição daquilo que é privado aos homens em nome da construção do status masculino. Não chorar, não amar, não se vestir de certas formas, não andar assim ou assado… a proibição é a herança por e para ser homem. E quando isso significa antecipar qualquer gesto, emoção ou moral com um “não”, ser um menino ganha um sentido duplo: pode ser sentença, pode ser alívio. Em “Meninos”, o foco, me parece, é na segunda opção, na delicadeza natural, na inocência, na “criança” interna que tantos homens abandonam.
Tanto os textos quanto a direção, feita por Lucas Mayor e Marcos Gomes, conservam esse traço de intimidade e acolhimento como um convite. Neste Brasil – um país infantil em quase tudo – há muitas histórias órfãs. E o teatro pode ser uma casa para encontrá-las.
Nota: As informações e opiniões contidas neste artigo são de inteira responsabilidade de seu/sua autor(a), cujo texto não reflete, necessariamente, a opinião do INFOTEATRO.