Esta semana a Folha de SP publicou uma excelente reportagem sobre a nossa OSESP e seus dilemas ao completar 70 anos de existência. Uma orquestra primorosa que se consolidou como patrimônio público, e que busca constantemente meios para manter e melhorar sua qualidade artística. Tudo isso no centro do coração de uma cidade recheada por contradições e problemas de ordens social e econômica. O interessante a observar é que a relação entre arte e sociedade já está dada na própria audácia do poder público de sustentar um conjunto sinfônico, que é também amparado por verbas da iniciativa privada. Não há a necessidade de justificativas e contrapartidas que ultrapassem o sentido intrínseco que há na música como veículo de transformação do interlocutor. Uma orquestra com a qualidade da OSESP transforma a sociedade em que ela está inscrita, e transforma para melhor. A arte que se estabelece como cultura e não como comércio, ou empreendedorismo seja lá de qual espécie, transforma as pessoas. E é preciso lembrar – para além da música como espetáculo -, a OSESP leva adiante práticas educativas e pedagógicas para democratizar o acesso, a formação e o estudo musical.
Parece incrível a diferença entre esse universo da música e nós, atores, cujo único projeto de vida desde a chegada das caravelas portuguesas por aqui é tentar sobreviver a essa baciada mercadológica que determina o que somos e devermos fazer para a satisfação de outras pessoas, de outros sujeitos ocultos ou bastante visíveis. Ora assumimos o papel de cobaias das demandas de um Estado falido – somos um puxadinho do fracasso educacional do poder público -, ora são os interesses de instituições que precisam preencher suas pautas para fazer rodar seu circo “cultural de entretenimento”, e aí viramos macacos de circo, outra de nossas funções mais nobres; ou, então satisfazemos o nosso próprio ego que ama estampar um nariz num cartaz e dizer assim ao mundo: venham nos ver brilhar no palco de sabe-se lá onde.
Uma ideia de teatro profissional é quase sempre tachada como um esforço de gente que deseja monopolizar um certo tipo de experiência teatral – a velha acusação de um teatro feito para a elite, quando, na verdade, o exemplo da OSESP nos diz exatamente contrário disso. E sob o argumento de que não existe UM TEATRO – o que é absolutamente verdadeiro – perde-se a chance de se pensar a formação do ator de ofício, a relevância de se ter companhias de teatro estáveis e públicas que estivessem amparadas pela excelência dos artistas nelas envolvidos. Que espécie de excelência é essa? Também não sei, seria preciso discutir isso, mas me parece uma discussão urgente, afinal de contas, fazemos teatro para quê? Se for para explorar as nossas emoções e afirmar nossas pautas e vontades de grupos que se querem bem, reformar um muro na esquina ou distribuir quentinhas na vizinhança, me parece que estamos gastando munição a toa, e perdendo a chance de, de fato, usar o teatro para transformar os arredores em direção a um rumo mais justo e digno. Nessa realidade de hoje o nosso teatro é muito mais um evento, uma economia informal de gente que precisa subir ao palco para dar conta de alguma questão particular do que algo que pertença a todos, a nós que fazemos teatro, e a sociedade que enxerga o teatro como algo que lhe pertence.
Adoraria entrar na Sala SP qualquer dia desses e perguntar para os músicos da OSESP sobre a relevância de se tocar Mozart, Beethoven, Bach, Villa-Lobos nos dias que seguem. Aposto meu rim que rolaria um sorriso generalizado, mais ou menos o mesmo deboche que sofreria quem interpelasse um gênio PhD de Harvard com a famosa máxima filosófica: quem veio primeiro, o ovo ou a galinha?
Enquanto a OSESP nada de braçadas em sua trajetória de vida, permanecemos nós aqui decidindo se Shakespeare era misógino, se Nelson Rodrigues era racista, se o padre Anchieta pertencia ao patriarcado hétero-normativo cis-tóxico não-binário, desesperados para emplacar um belo edital na esperança de sermos recompensados em nossas excepcionais boas intenções civilizatórias. E, nessa batucada dos antropólogos COM DRTÊ, continuamos a sustentar em cada esquina um caminhão de cursos de “formação” de atores que desova nesse mundão toda uma torcida do Flamengo para padecer na indigência recheada de ideias sensacionais, e tão flácida quanto uma Maria-Mole dócil iluminada por um ring-light de última geração.