Luiz Gois, conhecido como Luizão pelos íntimos, foi segurança do Teatro Aliança Francesa por duas décadas. Aos 61 anos – “gosto de falar minha idade” –, nascido em São Paulo, vive na Praia Grande: “Adoro que a areia entra em casa com o vento. Sinto um bem-estar danado. Sentir a vibração das ondas, a ligação entre Terra e Mar… é a mesma sensação da primeira vez”.
Desde minha primeira ida ao Aliança, em 2017, para trabalhar na produção do “Festival Que Absurdo!” – do Grupo TAPA – Luizão estava lá. Entre conversas e risadas no saguão do teatro, compreendi que, para ele, aquela função ia além de um simples trabalho. Sua dedicação e entusiasmo para proteger o teatro eram inspiradores – e, neste momento, não é diferente. Diante do risco iminente de demolição, Luiz continua a lembrar da importância daquele espaço, não só para a sua vida, mas também para a cidade e a cultura do país.
NATÁLIA BEUKERS: Em que ano entrou no Aliança Francesa e como chegou até lá?
LUIZ GÓIS: Trabalhar de segurança foi uma coisa meio sem querer; totalmente inusitada. Antes disso, tive outras oportunidades, como, por exemplo, gerente de restaurante japonês. Usei para meu trabalho como segurança tudo que aprendi fora dessa atividade e isso foi um diferencial. Eu já atuei como cantor também. Assim, lidar com o pessoal do meio teatral era uma situação conhecida para mim. Comecei a cantar no primário. Minha família gosta muito de música… As coisas eram muito precárias nos bairros longe do Centro… Não tinha energia. Para vencer essa falta de energia, à luz de velas, minha mãe cantava para a gente. A primeira música que aprendi com ela foi Carinhoso. Se tornou a música principal da minha vida. Ela canta muito bem e eu queria cantar como ela. Na escola tinha aulas de música, artes – era outra perspectiva de ensino. Depois, aprendi a tocar bateria e fui seguindo. Mas, depois, a vida foi para outros caminhos.
Comecei no Aliança em 2005, teve um período que sai – mas, depois, me estabilizei naquele trabalho. Quando comecei a ver os primeiros espetáculos lá, não havia equipe de limpeza no teatro, por exemplo. Então, eu limpava o palco, os banheiros. Não era minha função, mas o teatro precisava. E teatro é comunhão – aprendi isso, também com a música. Quando o TAPA retornou a ocupar o teatro, fui me envolvendo ainda mais nesse universo. A partir disso, foram contratados mais profissionais para dar estrutura ao teatro. Ao todo foram quase 20 anos de Aliança Francesa e, consequentemente, de teatro. Você me viu várias vezes lá, de quinta a domingo. Era muito bacana e gostoso estar lá. Foram muitas conversas, risadas e histórias. Dessa forma, o teatro apareceu para mim na fase adulta. Assisti muitos espetáculos infantis naquele teatro… Achava bacana a participação das crianças durante as apresentações, porque elas torcem, vibram, gritam. Eu via aquilo e lembrava da música, pois o público canta as canções com você… Lembrava dos meus showzinhos musicais. A primeira peça que assisti, se não me engano, foi um infantil. Levei meus filhos, que hoje estão com 30 (Vinícius), 27 (Leonardo) e 25 anos (Beatriz). Os nomes são pela música do Chico e por causa de Vinícius de Moraes.
Eu era sempre convidado a assistir todos os espetáculos. Mas eu me sentia compromissado em ficar lá fora cuidando do espaço. Mas, nos meus dias de folga, eu assistia todos os espetáculos que eu podia. Me divertia muito… Sou do tipo de público que aplaude entreatos, gritava “bravo” ao final das peças. Meu envolvimento com o teatro aliança francesa foi de tal forma que, quando penso em teatro, me vem a mente aquele espaço. Eu gostava de saber que o Teatro Aliança Francesa fazia parte do cenário cultural da cidade, um teatro muito requisitado. Estar lá, para mim, era estar em todos os teatros…
NB: Alguma peça que tenha te marcado?
LG: Tiveram várias… Para citar algumas: “O Testamento de Maria”, com Denise Weinberg, absoluta. Sabe aquele tipo de espetáculo que você assiste e sai tremendo? Eu não sabia que aquilo pudesse me envolver tanto. Eu pensei: “Agora o que que eu faço? Vou para casa? Pego um foguete e vou para a lua?”. Às vezes, um espetáculo tira você de você, e a Denise fez isso comigo. Um potencial artístico que até então eu não conhecia. A partir daquele espetáculo e de sua interpretação, Denise abriu meus olhos para todos os outros atores. Comecei a olhar mais para a Clara Carvalho, para o Guilherme Sant’Anna… Como se todas as pessoas com propensão artística tivessem uma Denise dentro de si. Você foi uma delas. Quando a gente ficava na porta do teatro, você recebendo as pessoas na bilheteria – teve uma vez que conversamos a respeito disso, eu te disse: “Vai ter um dia que vão olhar para você como atriz”. Anos depois você atuou no espetáculo O Jardim das Cerejeiras, que foi maravilhoso. Eu, assistindo, pensava: “Ela conseguiu! Que menina danada”.
NB: O que o teatro provoca em você e o que o teatro te ensinou?
LG: Quando eu assisto a uma peça de teatro, eu aumento o meu senso crítico. Assim, pude aprender. Fico mais à vontade, hoje, em falar sobre teatro. Quando eu tinha a oportunidade de conversar com os atores e diretores ao final dos espetáculos – o Tolentino, por exemplo, é uma escola infinita de aprendizado – eu conversava sobre o que tinha assistido, sobre os detalhes. Na portaria tinha uma câmera que pegava toda a plateia, ficava assistindo suas reações.
Eu sinto uma alegria muito grande ao assistir uma peça. É sempre um grande prazer poder ver essas histórias todas sendo contadas. Sei que não é fácil você ter uma ideia, criar um projeto, planilhar, escolher o local, e colocar tudo isso em cena. É muito trabalhoso, e como valorizo muito o trabalho, tento sempre estar presente. Pode ter alguma coisa em determinado espetáculo que sirva para a minha vida. Por exemplo, teve um espetáculo no Aliança Francesa chamado Uma Peça Por Outra. Tenho o maior carinho por esse trabalho… Escola de Mulheres eu assisti seis vezes. Todas as vezes eu dei risada… o Brian [Penido Ross] e todas aquelas crianças brincando ali, deslizando, flutuando no palco… Muito bacana. Na minha maturidade, o teatro me devolveu a alegria que senti quando jovem, por conta da música. Ele me devolveu essa emoção.
NB: Sobre o fechamento do Aliança…
LG: A pandemia foi responsável por muitas coisas e influenciou muito a rotina da Aliança Francesa como um todo. E essas circunstâncias afetaram demais as finanças da Aliança. Ela não teve como se recompor… Então, começou todo esse processo. Nós, que estávamos lá, pressentíamos que algo grave fosse acontecer. Mas a gente acredita. Acredita que tudo possa dar certo. Aquele espaço era nossa segunda casa; muitas das pessoas que trabalhavam ali amavam aquele lugar. Não passava na minha cabeça sair do Aliança. Aconteceu, inicialmente, em 2023, um acordo que possibilitaria nossa volta. Mas isso não se concretizou. A Aliança começou a se desfazer de unidades até chegar onde estamos. Fechar o teatro, é uma coisa muito pesada, muito grave para mim. Se pensarmos na construção de uma edificação para teatro, é como se você construísse um planeta. Mas, depois, é só chamar o trator que ele é derrubado. E, assim, parece que aquilo não teve sentido, que aquele espaço não produziu arte para a comunidade. O povo brasileiro gosta de arte, inventa música, inventa dança… E um teatro faz parte desta composição. Se acaba o teatro, elimina-se um ponto superimportante da cultura; o povo perde. Perdemos fisicamente, mas não emocionalmente, pois acreditamos na arte, na dança, na rima, no teatro. O brasileiro, por uma questão de identidade, precisa desses espaços. É complicado. Não é possível que, de repente, algo se sobreponha a isso. Simplesmente acaba. Pensar que entrávamos no Teatro Aliança Francesa sorrindo até pouco tempo. O ator Zécarlos Machado, que se tornou um grande amigo, descansava naquele espaço. Longos abraços quando nos encontramos. Se você o vir, mande um abraço para ele.
NB: Quais são seus planos? Você se preparou para sair de lá?
LG: Não tive preparação. Era para eu ter me aposentado no Aliança, essa era a ideia. Mas quando eu passava por lá, e encontrava alguém da direção, me diziam que as coisas estavam realmente difíceis. Aquilo foi me deixando com uma angústia… Aí bateu uma preocupação muito grande. Hoje estou procurando trabalho.
NB: Algo mais que queira deixar registrado?
LG: Trabalhar na Aliança Francesa foi um grande presente para mim. Gostava muito, fiz muitas amizades, conhecia todo mundo da região. O prédio era resguardado por toda essa comunidade. Em relação ao teatro, quando vi o amor que vocês tinham pelo espetáculo, pelo ensaio, pela leitura, por estarem ali, isso fez aumentar o meu amor pelo meu trabalho também. Fez com que eu quisesse fazer melhor o meu trabalho, para que eu tivesse mais coisas a dar a vocês e àquele espaço. Eu aprendi muito com o amor do ator pelo seu ofício. Experiência extraordinária. Sinto muita saudade… Foi um corte na minha vida.
NB: Você tem esperanças?
LG: Tenho esperanças. Mas, por exemplo, para que o teatro seja tombado, o processo passará por uma análise. Análise essa que pode ser feita por algum profissional que não tem afinidade com o que aquilo representa, a importância que aquele espaço teve e tem na vida de muitos cidadãos. Este é o perigo, tantas histórias, podem virar um nada.
***
Em um áudio enviado por Gois ao produtor do Grupo TAPA, Ariell Cannal, aos prantos, ele disse: “Eu aprendi com o amor que vocês têm pela arte a ser uma pessoa melhor. Vocês todos foram meus professores… Obrigado por tudo o que vocês fizeram por mim. Eu não consegui ficar ali, até o final, pois eu percebi, pela primeira vez, as pessoas saindo do teatro em silêncio, isso me incomodou bastante. Tive uma sensação pesada… eu desabei em um choro… Foi difícil. Puxa vida… Eu não sei o que vai ser construído ali, mas, por mais bonito que seja, eu só vou conseguir enxergar o teatro… e a vida que nós tivemos”.
É fundamental retomarmos essa luta: lutar quando é fácil ceder, vencer o inimigo invencível, negar quando a regra é…