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Foto: Renata Casagrande
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“Dois de Nós”, a comédia estrelada por Antonio Fagundes e Christiane Torloni, dosa ingredientes pensados para satisfazer o público – e não há pecado nisto

Sob direção de José Possi Neto, a peça de Gustavo Pinheiro, o dramaturgo mais requisitado do momento, parte de um jogo de espelhos recorrente na ficção para abordar questões contemporâneas

Crítica Por Dirceu Alves Jr.

De tempos em tempos, o teatro brasileiro elege o autor do momento, e este nome passa a chamar a atenção de artistas e produtores em busca de material para futuras montagens. Basta pensar que, entre o fim dos anos de 1980 e a maior parte da década de 1990, o dramaturgo Mauro Rasi (1949-2003) representou um respiro pós-ditadura com celebradas comédias de costumes. Ele viu suas palavras reproduzidas diante de grandes plateias por Marieta Severo (A Estrela do Lar), Vera Holtz (Pérola), Fernanda Montenegro (Alta Sociedade) e até Paulo Autran (O Crime do Doutor Alvarenga), os dois últimos, principalmente, inquestionáveis chancelas.

Dando um salto no tempo, no início da década de 2010, as atenções se voltaram para o autor Jô Bilac, destacado nas peças Cachorro! e Rebu, da sua Companhia Teatro Independente. A Cia. dos Atores fez sucesso com Conselho de Classe, Marco Nanini encomendou a Bilac Beije Minha Lápide e Monique Gardenberg e Bia Lessa dirigiram respectivamente Fluxorama e P.I. Panorâmica Insana, que traziam histórias de Bilac. Hoje, ele assina Férias, comédia estrelada por Fábio Assunção e Drica Moraes.

Estamos quase na metade da década de 2020, e o dramaturgo da vez é o carioca Gustavo Pinheiro, de 44 anos, responsável pela comédia Dois de Nós, a atual investida do ator e produtor Antonio Fagundes. E, na trajetória de Pinheiro, ser montado por Fagundes equivale ao reconhecimento obtido por Rasi ao despertar o interesse de Fernanda ou Autran na época. O espetáculo, dirigido por José Possi Neto, em cartaz no Tuca, em São Paulo, traz no elenco ainda as atrizes Christiane Torloni e Alexandra Martins e o ator Thiago Fragoso em uma dramaturgia que aperfeiçoa um estilo perseguido por Pinheiro – o de dialogar com outras obras e estilos que possam tê-lo influenciado.

Com uma extensa produção em menos de dez anos de carreira, Gustavo Pinheiro investiga os conflitos de uma classe média desestabilizada pelas transformações do cotidiano. Além disto, ele costuma recorrer ao humor para criar personagens próximos aos espectadores, quase sempre apanhados de surpresa pelas mudanças sociais e comportamentais.

Foto: Renata Casagrande

Em 2016, ele estreou com A Tropa, drama familiar em torno de um pai ex-militar (vivido por Otávio Augusto) e os quatro filhos cheios de crises decorrentes da criação austera. Depois vieram, entre outras, Alair, peça interpretada por Edwin Luisi, Relâmpago Cifrado, com Ana Beatriz Nogueira e Alinne Moraes, e o grande sucesso A Lista, protagonizado por Lilia Cabral e Giulia Bertolli, projeto nascido no formato digital, na pandemia, que excursiona pelo país há dois anos e meio.

Os seus tipos ganham corpo no teatro, mas poderiam fazer parte de uma elaborada dramaturgia de televisão, afinal são permeados por um naturalismo comum ao veículo. O seu olhar é semelhante ao aperfeiçoado por Rasi ou até por Naum Alves de Souza (1942-2016) e Miguel Falabella, que, em um tempo em que a classe média lotava as salas de espetáculos, foram considerados os autores da moda.

Detalhes das relações humanas, uma picuinha que surge do nada ou aquela ferida difícil de cicatrizar ganham uma nova proporção pelo olhar observador de Pinheiro. Pode-se até questionar que suas inspirações nem sempre sejam tão originais assim, mas as referências intertextuais presentes na obra de Pinheiro resultam de um constante diálogo com as informações que lhe abastecem.

Por exemplo, A Lista tem uma história que, para os mais atentos, conversa com a peça Visitando o Sr. Green, do norte-americano Jeff Baron. O texto, lançado no Brasil por Paulo Autran em 2000, enfoca um idoso rabugento obrigado a conviver com um rapaz que desestabiliza a sua rigorosa rotina. A solução dramática de A Tropa, por sua vez, remete à traumática relação de Heleninha (papel de Renata Sorrah) e Odete Roitman (vivida por Beatriz Segall) na novela Vale Tudo, criada em 1988 por Gilberto Braga (1945-2021), de quem Pinheiro é fã confesso.

Agora, em Dois de Nós, é fácil detectar duas inspirações que podem ter rondado o autor. A primeira é Três Mulheres Altas, texto do norte-americano Edward Albee (1928-2016), que, não à toa, ganhou tradução de Pinheiro para a atual versão dirigida por Fernando Philbert, em cartaz há dois anos. A história apresenta o encontro de três mulheres em diferentes fases da vida – a juventude, a maturidade e a velhice – que representam a mesma pessoa.

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Quem sabe o mesmo Albee não tenha motivado João Falcão a escrever A Dona da História, um divertido e profundo jogo de espelhos protagonizado por Marieta Severo e Andréa Beltrão no fim da década de 1990? Ali, uma garota de 15 anos se vê diante da mulher que será aos 50 e, desgostosa com a imagem, tenta desviar dos caminhos que a levaram para aquele destino.

Chegando finalmente a Dois de Nós, podemos dizer que o atual trabalho é o mais bem-sucedido caso de uma possível inspiração intertextual na obra de Pinheiro. O autor escreveu uma peça calcada em contornos contemporâneos que se aprofunda muito mais nas problemáticas que A Tropa ou A Lista. Em Dois de Nós estão evidenciadas as evoluções comportamentais das últimas quatro décadas e o quanto isso interferiu nas relações amorosas através de dois casais confrontados em um quarto de hotel.

Quase todas as temáticas em pauta no momento, pelo menos em se tratando de um casal, estão presente no texto. Os personagens se envolvem em situações de machismo, empoderamento feminino, preconceitos, abusos de poder e etarismo, devidamente embalados em uma história palatável e pronta para movimentar as bilheterias – o que não é pecado algum.

Pedro Paulo e Maria Helena (interpretados por Fagundes e Christiane) têm por volta de 70 anos e acabaram de chegar de uma festa de bodas de ouro. Não disfarçam o incômodo com tanta hipocrisia alimentada pelos amigos e, enquanto se preparam para dormir, algumas mágoas do passado vêm à tona. No mesmo quarto de hotel, há pouco mais de três décadas, foi deflagrada a primeira grande crise entre eles, a briga que quase culminou em uma separação definitiva.

As memórias são compartilhadas a muito custo e, diante de Pedro Paulo e Maria Helena, aparecem Pepê e Leninha (vividos por Fragoso e Alexandra). O casal, à beira dos 40 anos, acaba de voltar de uma outra festa, mas a alegria das fantasias usadas contrasta com o tédio da rotina desgastada.

Os dois são pais de um menino e de uma menina, todas as responsabilidades com a educação recaem sobre Leninha, enquanto Pepê cumpre o papel de provedor que não deixa faltar nada à família e se orgulha das qualidades exibidas pelo filho varão. Pepê não controla o instituto conquistador e costuma dar seus sumiços nas festas sem perceber o quanto magoa a companheira. Leninha se sente tão reprimida que não tem coragem de assumir ao marido que gosta de fumar um simples cigarrinho – e ele tampouco percebe.

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O jogo de espelhos ganha a cena. Pepê e Leninha ficam chocados com o quanto Pedro Paulo e Maria Helena são cínicos e amargos. “Não é possível que envelhecer seja isso”, diz Alexandra Martins como Leninha, para, em seguida, completar seu pensamento. “Não é possível que envelhecer seja só isso.”

As comparações se multiplicam, e o público gargalha até de si mesmo. O rapaz que era o dono da verdade virou o senhor que coloca o rabinho entre as pernas, a mulher, antes dominada, detém o controle financeiro. A plateia continua rindo muito, quem sabe até de si mesma, e, quando a peça ameaça cair em uma sucessão de piadas gratuitas, é revelada uma tragédia familiar que, como em um bom capítulo de novela, faz parte da plateia afundar na poltrona.

Pepê se vê obrigado a repensar a própria arrogância, e Leninha se fortalece para entender que pode se assumir dona da sua narrativa. Pedro Paulo e Maria Helena observam os mais jovens com um olhar quase piedoso diante da imaturidade e tentam orientá-los ainda que quase nunca ganhem ouvidos. O casal mais velho se envergonha das atitudes do passado, principalmente Pedro Paulo, e deseja sacudi-los para que os erros possam ser evitados ou corrigidos a tempo. “Você pare de confundir vulnerabilidade com fraqueza”, diz Pedro Paulo para a sua versão ainda repleta de testosterona.

Dois de Nós é uma peça muito mais calcada em situações que o tipo de texto capaz de oferecer grandes saltos interpretativos aos artistas. A mão sempre refinada do diretor José Possi Neto entendeu bem isso e constrói uma encenação sensível apoiada no carisma de seu elenco.

Como Pedro Paulo, Fagundes destila o charme habitual em um preciso bate-bola com os colegas que é facilmente comprado pela plateia. Consciente de seu tamanho, ele guarda na manga o quanto consegue o perfil de galã para demonstrar as fragilidades do personagem – mesmo que sob um viés cômico. Christiane Torloni, em sua confortável parceria de quase quatro décadas com Possi, pouco se desafia em uma composição próxima àquela que está acostumada na televisão. Seus dois melhores momentos são justamente os mais densos, quando Maria Helena trata da citada tragédia familiar ou de um problema de saúde superado no passado.

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Thiago Fragoso e Alexandra Martins se mostram mais descompromissados com qualquer imagem que seja – até porque não possuem uma tão forte para servir de apoio – e parecem mais leves em cena, um paradoxo aos conflitos de ambos. Como Pepê é o tipo mais carregado de estereótipos, Fragoso ressalta falhas e preconceitos, o que possibilita a Alexandra um contraponto firme para salientar as diferenças da personagem nas duas fases.

Aliás, são justamente Fagundes e Alexandra os responsáveis pelo espelhamento maior das transformações dos perfis de Pepê em Pedro Paulo e Leninha em Maria Helena. Os dois representam a necessidade de adaptação ao outro ou até o escancarar das fragilidades em nome de uma relação. Se, no passado, Pepê detinha o poder, agora é a vez de Maria Helena, e o oprimido, nesta história, rende maiores nuances aos intérpretes.

O teatro brasileiro desde o fim da pandemia vive uma expressiva retomada de diálogo com o grande público. Diversos espetáculos registram lotações esgotadas com grande antecedência, e as temporadas têm sido constantemente prorrogadas, pelo menos em São Paulo e no Rio de Janeiro. Fagundes, um ator e produtor preocupado em atender ao seu público, percebeu que este é um momento de alimentar esta efervescência e não colocar em risco a confiança dos espectadores.

Gustavo Pinheiro, por sua vez, é o autor certo nesta hora certa do teatro brasileiro. Em sua permanente busca pela comunicação, ele se impõe como um dramaturgo consciente da importância dessa reconquista popular. O mesmo pode ser dito de Possi, que começou no teatro experimental, foi alçado a encenador da vez na década de 1980 e sabe muito bem quando é a hora de oferecer um trabalho palatável a um público cansado de polarizações ou excesso de discursos.

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Dois de Nós, certamente, não é o melhor espetáculo montando por Fagundes, mas certamente é o que exigiu uma dedicação maior de Pinheiro, daquela que salta aos olhos, afinal não dá para decepcionar em uma encomenda do grande ator. Aqui, o dramaturgo comprova o entendimento sobre o que deseja o público do seu tempo, aquele que faz a bilheteria girar. Como suporte e inspiração, ele usa sua bagagem para construir narrativas contemporâneas que podem, sim, carregar referências e citações de outras obras.

Pode-se gostar ou não, mas o estereotipado “teatro comercial” (perdão pelo uso do termo tão desgastado) precisa existir com força e, quem sabe, o público que se rende a ele, vendo mais e mais peças que lhe agrade, não comece a se desafiar e procure outros tipos de espetáculos?

 

Nota: As informações e opiniões contidas neste artigo são de inteira responsabilidade de seu/sua autor(a), cujo texto não reflete, necessariamente, a opinião do INFOTEATRO.

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Dirceu Alves Jr.

Dirceu Alves Jr.

É jornalista, escritor e crítico de teatro, trabalhou em Zero Hora, IstoÉ Gente e Veja São Paulo e publicou os livros Elias Andreato, A Máscara do Improvável (Humana Letra) e Sérgio Mamberti, Senhor do Meu Tempo (Edições Sesc).

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