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Foto: João Caldas Fº
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Comédia sem concessões, “Insignificância” desafia o público a aceitar a melancolia por trás das celebridades

O diretor Victor Garcia Peralta vai na contramão da imagem para investir na psicologização de personagens famosos em peça do inglês Terry Johnson

Crítica Por Dirceu Alves Jr.

Em 2016, Jô Soares (1938-2022) dirigiu Histeria, comédia do dramaturgo inglês Terry Johnson, que entregava mais que o prometido para aqueles que esperavam um mero entretenimento. A brilhante montagem promovia uma reunião fictícia entre o psicanalista Sigmund Freud (interpretado por Pedro Paulo Rangel) e o pintor Salvador Dalí (papel de Cassio Scapin) em meio à perseguição nazista aos judeus. O texto, escrito em 1993, repetia uma fórmula testada pelo autor uma década antes, que, neste fim de 2024, pode ser vista no Teatro Faap, em São Paulo.

Definida como “uma comédia relativa”, Insignificância se apoia em outro encontro imaginário, desta vez envolvendo quatro celebridades. O físico Albert Einstein (1879-1955), o senador anticomunista Joseph McCarthy (1908-1957), a atriz Marilyn Monroe (1926-1962) e o jogador de beisebol Joe DiMaggio (1914-1999) se cruzam em um quarto de hotel na Nova York de 1953. Todos estão exaustos, à flor da pele e só queriam sossego. Mas, por serem quem são e pelo momento que o mundo atravessa, isto é impossível.

Foto: João Caldas Fº

Aliás, o subtítulo deveria ser mais explorado para preparar os espectadores, pelo menos aqueles pouco interessados em decifrar subtextos, algo que aparece aos montes. Se tem comédia na dramaturgia, ela é, sem dúvida, bastante relativa. Quando Insignificância faz rir – e faz, claro, nos moldes do humor inglês –, a reação vem carregada de uma melancolia que só a valoriza como teatro, mas decepciona quem procura digestivos.

Sob a direção de Victor Garcia Peralta e tradução de Gregório Duvivier, a peça carrega esse mérito, o de não aliviar a barra de ninguém, e, por isso, oferece ótimas oportunidade ao elenco. O quarteto de atores oferece um trabalho tão bom que o público, bastante exigido na atenção e na readequação das expectativas, sai do teatro meio atônito. Como é possível rir destas pessoas tão infelizes?

Cassio Scapin, que foi Dalí em Histeria, é Albert Einstein, um velho cansado de guerra e quase babão, uma composição técnica que em nada remete ao gênio da física cheio de caras e bocas, considerado por alguns uma mente perigosa para humanidade. É assim que pensa Joseph McCarthy, interpretado por Norival Rizzo, que substituiu Pedro Paulo Rangel (1948-2022) como Freud naquela mesma outra montagem. Capitão da caça às bruxas na Guerra Fria, o senador ameaça Einstein para que em um depoimento, marcado para a manhã seguinte, nada traia as suas expectativas.

“Hoje é uma noite de merda e amanhã vai ser um dia de merda”, diz McCarthy a Einstein, na tentativa de convencê-lo a aceitar um copo de uísque. O físico, que não bebe, pensa que pode ter um pouco de tranquilidade quando se livra do algoz, porém entra pela porta uma loira de vestido branco esvoaçante. É Marilyn Monroe, ou melhor, a atriz Amanda Acosta, em pânico latente. Ela acabou de rodar a cena de um filme em uma movimentada avenida em que sua saia é levantada pela ventilação do metrô e se sentiu um pedaço de carne exposto no açougue. “Eu sei que tá no meio da madrugada, mas te conhecer é a coisa mais maravilhosa”, fala a estrela a um Einstein confuso, quase ausente. “Você não está me reconhecendo?”, pergunta ela.

Foto: João Caldas Fº

O último a chegar, praticamente derrubando a porta do quarto, é Joe DiMaggio, o astro do beisebol aposentado e amedrontado com a possibilidade de ser visto só como o marido de Marilyn. O tipo violento e abusivo, capaz de aumentar a desestabilização da deusa das telas, ganha uma representação surpreendente de Marcos Veras. O ator, tão associado às comédias e mais ainda ao stand-up, aparece em cena econômico, longe de forçar qualquer traço raivoso e pouco modula o personagem – o que é positivo. É uma criança tosca, decepcionada com a vida, que sofre por não estampar mais as figurinhas das embalagens de chicletes.

A questão “Você não está me reconhecendo?” norteia toda a peça e, apesar das caracterizações fiéis, Garcia Peralta persegue a contramão da imagem para investir na psicologização. A fama nada significa para a identificação dos personagens e, na maior parte das vezes, paira entre eles a dúvida sobre realmente quem é quem.

Dentro dessa linha interiorizada, Amanda Acosta, um caso raro de atriz capaz de convencer o público de que é qualquer coisa, dá mais uma prova de talento. A sua Marilyn é construída sem nenhum clichê. De óbvio, Amanda só exibe o figurino – e, mesmo assim, porque, na peça, ela saiu às pressas da filmagem de O Pecado Mora ao Lado.

O que se vê é uma mulher triste por ninguém a enxergar além da casca e devastada com os abortos espontâneos que a impedem de ser mãe. Ao mesmo tempo, mostra-se manipuladora e disposta a enfrentar riscos por um bem comum – o que derruba a ideia de futilidade associada ao seu nome. “A sua busca não é entender tudo, mas entender tudo o que você sabe”, ouve ela de Einstein.

No quarteto protagonista, o único contraste a essa psicologização é Norival Rizzo, aquele ator que aproxima qualquer personagem do público, inclusive com McCarthy. O senador é tão humanizado que Rizzo é quem extrai da plateia as risadas mais espontâneas, justamente por ser colocado no patamar dos comuns. Esta linha de condução é uma prova de que a direção deve ter entendido que de todos os personagens McCarthy é o que exige uma referência mais específica do espectador. E, mesmo estando em um bairro nobre paulistano e no prédio de uma universidade, vários podem nem fazer ideia de quem se trata.

Voltando à frase dita pelo senador a Einstein nos primeiros minutos da peça, não era só naquela noite que todos estavam na merda. Como a vida real se encarregou de provar, os quatros personagens de Insignificância jamais sairiam dela. Einstein morreu dois anos depois, o rápido casamento de Marilyn e DiMaggio não resistiu ao lançamento de O Pecado Mora ao Lado, e ela sucumbiria à depressão, morrendo em 1962. DiMaggio sofreu até o fim ao ter que se contentar com as glórias do passado, e McCarthy morreria em 1957, desmascarado como um inimigo da democracia. Neste caso, justiça foi feita.

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Diante de um trabalho de qualidade, mas possível de enfrentar diferentes reações, Insignificância abre espaço para uma reflexão que pode colaborar para entender o que deseja quem paga para ver um espetáculo. Na sessão conferida por este que vos escreve, em 11 de outubro, os aplausos foram tímidos e eu mesmo, espectador de, no mínimo, três peças por semana, levei um tempo para digerir os méritos da encenação que acabara de ver.

Primeiro, eu me apeguei às interpretações inquestionáveis para me convencer de que a peça era realmente boa. Depois, mais lúcido, comecei a pensar no diferencial da dramaturgia ao oferecer perfis pouco idealizados destes quatro personagens tão presentes no nosso imaginário.

Por fim, entendi que Insignificância é uma comédia melancólica mesmo, quem sabe até menos palatável para a média. Porque equivocado seria o diretor, com o objetivo de agradar a plateia, colocar o Einstein de Scapin de língua de fora, Marilyn gemendo com uma voz sensual e os dois machões, o da política e o dos esportes, inspirados nos colegas brasileiros que vestiam a camiseta verde e amarela.

Insignificância fala de quase tudo que é regra no teatro atualmente – violência psicológica, política, etarismo, machismo, relacionamento abusivo – e ainda, levado pelo bom humor inglês, faz rir em alguns momentos. Assim como Histeria, dirigida por Jô Soares, entrega mais que o esperado para um mero entretenimento. Só é preciso o público fugir dos significados óbvios e deixar de lado a acomodação para buscar outros significantes.

 

Foto: João Caldas Fº

 

 

Nota: As informações e opiniões contidas neste artigo são de inteira responsabilidade de seu/sua autor(a), cujo texto não reflete, necessariamente, a opinião do INFOTEATRO.

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Dirceu Alves Jr.

Dirceu Alves Jr.

É jornalista, escritor e crítico de teatro, trabalhou em Zero Hora, IstoÉ Gente e Veja São Paulo e publicou os livros Elias Andreato, A Máscara do Improvável (Humana Letra) e Sérgio Mamberti, Senhor do Meu Tempo (Edições Sesc).

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