Você está na cidade de:

2024: o ano em que os monólogos dominaram o teatro para crianças

O risco de se apresentar para o público mirim de forma solo não intimidou produtores e artistas no ano que está acabando: nos palcos de São Paulo, nada menos do que dez monólogos de censura livre fizeram temporadas e cativaram plateias com muito talento e diversidade temática

Crítica Por Dib Carneiro Neto

Quem tem medo do lobo mau? E quem tem medo de monólogo no teatro? E de monólogo no teatro infantil? Não tenha. O ano de 2024, que está quase acabando, foi a prova de que muitos artistas se deram bem nos palcos da cidade de São Paulo, atuando em solos, ou seja, em monólogos. O “formato”, por assim dizer, caiu este ano, mais do que nunca, nas graças dos produtores e das companhias, seja pela facilidade de transporte e execução do espetáculo, seja pela possibilidade de diminuir custos de produção, seja pela potência da dramaturgia concentrada em um só intérprete. Seja pelo que for, os monólogos reinaram nos palcos paulistanos de censura livre no transcorrer de 2024. Querem saber quantos monólogos para crianças eu vi em 2024? Pois olhem que fartura: 10. Isso mesmo: 10 monólogos infantis. Todos em São Paulo, fora os que vi por festivais pelo Brasil. Um número muito significativo e eloquente. Principalmente porque são 10 peças boas, com qualidades a se louvar. Vamos relembrar delas, à guisa de balanço do ano? É importante deixar esse registro, como forma de documentar a escolha de um caminho dramatúrgico cada vez mais frequente no teatro para crianças.

As Pedras de Javier, que marcou os 40 anos do premiado grupo paulistano XPTO, era um monólogo. Com Tay Lopez em cena: talento, versatilidade, jogo de cintura, carisma, simpatia, segurança, credibilidade, excelente potencial vocal de narrador, ritmo e cadência de bom contador de histórias. No texto e direção, Osvaldo Gabrieli e na direção musical, Beto Firmino. Eram várias pedras no palco, de diversos tamanhos e formas, que contavam histórias, presentes em um livro do poeta argentino Javier Villafañe (1909-1996), um bonequeiro que marcou a história do teatro de animação em Buenos Aires e no mundo. Um belo tributo, com ritmo, poesia, emoção, fantasia. Puro deleite em exercício de mera simplicidade.

As Pedras de Javier / Foto: Osvaldo Gabrieli

Carlos Escher esteve na na pele de O Sapateiro Ruço, espetáculo concebido e dirigido por Cássio Brasil. Refinamento estético, temática inusual, abordagem realista. Escher demonstrou estofo brechtiano, portes de príncipe e de mendigo, verdade nos olhos e no corpo, carinho pelo teatro narrativo, jeito pra lidar com objetos, rebolado de circo. Tudo isso se via em cena, num trabalho minucioso e dedicado. E havia uma impressionante caixa cenográfica no palco, um cubo móvel, eficientemente versátil e útil para o desenrolar da trama, impedindo que o monólogo virasse monótono.

O Sapateiro Ruço / Foto: Alicia Peres

Como foi comovente ver O Retrato de Janete, com Jackie Obrigon, sempre estelar, comemorando com esse monólogo de Marcelo Romagnoli os 30 anos de sua carreira e 12 de sua companhia, a Bendita. Jackie, com muita propriedade, defende um texto que é apoiado no estilo memorialístico – e isso é pura coragem em uma atração de censura livre. Mas as crianças curtiram muito ouvir as histórias de Maristela, uma veterana atriz em seu camarim (tem 200 anos!), que vive na companhia de sua única amiga, a vespa Janete. E, solitária, conversa com ela o tempo todo. O Retrato de Janete presta sua homenagem aos resistentes, aos resilientes, aos artistas que já começam a sofrer os efeitos do etarismo, mas nunca desistem. Não se foge do teatro. É um amor que se entranha. Quem nasce com o destino do teatro não tem para onde fugir.

O Retrato de Janete / Foto: Ronaldo Gutierrez

Um espetáculo rico em detalhes, cuidados e sensibilidades foi ‘Sinta o Cheiro do Mar’, em que a atriz e dramaturga Stella Tobar, em cena com dois músicos e um telão exibindo criativas ilustrações animadas, conta tudo sobre uma menina buscando coragem para enfrentar um dia de hospital. Ela vai passar por um procedimento no nariz, para melhorar sua respiração e finalmente conseguir sentir…o cheiro do mar. Excelente escolha temática, dramaturgia desenvolvida sem pressa, em ritmo crescente e empolgante de narração. Um monólogo pleno de recursos e de envolvente vivacidade, como deveriam ser todos.

Sinta o Cheiro do Mar / Foto: Gui Assano e Joao Maria

“Quintal, sarau, varal. Ninguém mais sabe o que é isso.” Usando esse mote e essa premissa, Operilda Cai no Choro, escrita por Andréa Bassitt e dirigida por Regina Galdino (a mesma dupla da premiada Operilda na Floresta Amazônica), temperava delícias saudosistas para os adultos com brincadeiras ludicamente instrutivas para as crianças. Foi outro espetáculo sem ansiedades, sem atropelos. Seu ritmo era o das boas histórias contadas com calma, cadência calculada e muito brilho nos olhos. Com o apoio de quatro músicos em cena, Andréa Bassitt nos encantou do começo ao fim, com sua voz potente e ao mesmo tempo acolhedora, com seus gestos precisos, seu carisma inegável. Um agradabilíssimo trabalho de atriz. Técnica apurada de teatro narrativo aliada à leveza de uma intérprete visivelmente apaixonada por sua personagem.

Operilda Cai no Choro / Foto: João Caldas Filho

“– Ei, meninada! O mundo não é. O mundo está sendo.” Essa é uma das incríveis frases da peça ‘Vitalino, Teu Nome no Barro’, veículo perfeito para o talento de contadora de história da carismática Elaine Buzato, da Cia. Tempo de Brincar, criada em 2002. A personagem deixa claro desde o início, por meio da letra da canção inicial, que ela não é de carne e osso. Ela é uma das “crias” de barro do ceramista, escultor, artesão e músico pernambucano Mestre Vitalino (1909-1963), cuja história de vida e arte é contada por ela no espetáculo. A canção diz: “Sou cria da terra e feita de barro.” A sessão em que estive foi muito potente na interação da atriz com a plateia mirim. Reação de criança não se explica, não é facilmente desvendável, mas talento de atriz, sim, isso se pode tentar explicar. Essas crianças sentiram confiança na força da personagem em cena, no acolhimento dela, no tom de voz, na cadência – os gestos, o não-verbal. Sem nenhum chamado explícito, a atriz “convocava” sua plateia para dentro do espetáculo, de forma plácida e afetuosa. Melhor dizendo: a atriz atraía a proximidade de sua plateia. As crianças foram. Eu fui também. Inesquecível.

Vitalino Teu Nome no Barro / Foto: Ricardo Camargo

Um inusitado misto de masterclass e solo de palhaço, ‘Des/Criativo’, espetáculo que veio de Belém do Pará para curta temporada em São Paulo, misturava a fina ironia de questionar o ineditismo nos espetáculos de palhaçaria e a singeleza poética de cenas clássicas revisitadas. Kevin Braga brilhou em um solo de palhaço escrito por ele mesmo. Era uma atração para crianças em que o texto falava mais forte do que as ações típicas de palhaçaria. Impressionou a elaborada construção de um roteiro inteligente, pleno de conceitos e de provocações estéticas. Des/Criativo, com direção de Lírio do Pará, usou como tema o quanto é difícil ser criativo depois que tudo já foi feito, depois que ser inédito ficou improvável – e há quem diga até impossível. Era esse o lance de Des/Criativo, ser criativo ao insistir que não é criativo, ao ensinar que o ineditismo já morreu, que o cinema vive de remakes, que as artes plásticas sobrevivem reproduzindo cópias, que a dança está cada vez mais apenas técnica, que o teatro ficou submisso aos clássicos e assim por diante. Provocações claras, diretas.

Des/Criativo – Foto: Valeria Lima

Outro palhaço solo em cena foi o ótimo Nico Serrano, que voltou em temporada com o seu bem-sucedido Entre Risos, concebido por ele próprio como homenagem aos palhaços de circos tradicionais e comediantes de humor físico. Nico dominou o palco com muita competência, fingindo estar nos bastidores de um circo, esperando sua vez de correr ao picadeiro. Enquanto espera, ele fuça em tudo, no bola do equilibrista, na sapatilha da bailarina, nos truques do mágico… E suas brincadeiras viram cenas ótimas, muito agradáveis de ver e de aplaudir. O lirismo de um palhaço solitário foi muito bem retratado nesse Entre Risos. Mais um eficiente monólogo criativo.

Entre Risos / Foto: Cris Belier

Um show de visualidades. Uma maravilha de integração de linguagens artísticas. Um sopro de ar fresco no universo cenográfico de espetáculos voltados para crianças e jovens. Um tema premente – mitologia afro-brasileira, com toda a sua carga de sabedoria sobre a vida. Assim foi a nova peça infantil do coletivo Os Crespos, De Mãos Dadas com a Minha Irmã, dirigida por Aysha Nascimento, Praticamente sozinha em cena o tempo todo, Lucelia Sergio mais uma vez demonstrou ser um fenômeno de atriz e com presença luminosa. Ainda que apresentasse um texto um pouco longo, foi porém um lindo espetáculo, com deslumbrante integração entre as imagens do telão e a atriz no palco – como poucas vezes se viu de forma tão competente.

De Mãos Dadas com a Minha Irma / Foto: Mariana Ser

Não posso encerrar essa minha declaração de amor aos monólogos infantis de 2024 sem citar um espetáculo português, que vi em Santos: ‘O Estado do Mundo (Quando Acordas)’, uma produção do grupo Formiga Atômica, de Portugal. Único em cena, Edi Gaspar é narrador, manipulador dos bonecos, contador de histórias, disparador de efeitos cênico-visuais impactantes, camera man realizador de gravações ao vivo exibidas em um enorme telão em forma de esfera e, claro, um ator singular. Ele é tudo isso, com sua voz acolhedora e seus olhares certeiros, tendo no palco a companhia de um meteoro cenográfico enorme, que vai se abrindo em fendas e buracos, e se moldando de acordo com as necessidades da narrativa, auxiliando o ator na construção da fábula. Foi uma ode à força das crianças na condução do futuro do planeta, um tributo à esperança, lançando mão de criatividade, espontaneidade, leveza, harmonia e graça.

O Estado do Mundo Quando Acordas / Foto: Lais Pereira

 

Nota: As informações e opiniões contidas neste artigo são de inteira responsabilidade de seu/sua autor(a), cujo texto não reflete, necessariamente, a opinião do INFOTEATRO.

Compartilhar em
Sobre
Dib Carneiro Neto

Dib Carneiro Neto

Jornalista, dramaturgo e crítico teatral. Começou a escrever críticas sobre teatro infantil em 1990, na revista Veja São Paulo. Foi editor-chefe do caderno de cultura do jornal O Estado de S. Paulo (2003 a 2011). Atualmente, edita o site e canal do youtube Pecinha É a Vovozinha, que ganhou o Prêmio Governador do Estado em 2018, na categoria Artes para Crianças, além de menção honrosa no Prêmio Cbtij. Por sua peça Salmo 91, ganhou o Prêmio Shell de dramaturgo em 2008. Em 2018, ganhou o Jabuti pelo livro Imaginai! O Teatro de Gabriel Villela.

Siga o crítico

InfTEATRO em números

0 peças no site
0 em cartaz
0 colunas
0 entrevistas

Receba as nossas novidades

Ao se inscrever você concorda com a nossa política de privacidade

Apoios e Parcerias

Inf Busca Peças

Data
Preço

Este website armazena cookies no seu computador. Esses cookies são usados para melhorar sua experiência no site e fornecer serviços personalizados para você, tanto no website, quanto em outras mídias. Para saber mais sobre os cookies que usamos, consulte nossa Política de Privacidade

Não rastrearemos suas informações quando você visitar nosso site, porém, para cumprir suas preferências, precisaremos usar apenas um pequeno cookie, para que você não seja solicitado a tomar essa decisão novamente.