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Comédia leve e popular, “Toc Toc” resiste ao tempo e mostra um diretor apropriado do conteúdo

Íntimo dos personagens, Alexandre Reinecke acerta ao remontar a peça do francês Laurent Baffie, lançada no Brasil em 2008 e para a qual ele ensaiou mais de trinta atores e atrizes em diferentes temporadas

Crítica Por Dirceu Alves Jr.

Em maio de 2008, a comédia Toc Toc estreou na Sala Rubens Sverner do Teatro Cultura Artística e, poucas semanas depois, as 339 poltronas do chamado Culturinha começaram a lotar graças a um animado boca a boca. A peça, escrita pelo francês Laurent Baffie em 2005 e sucesso imediato em diversos países, ganhou inédita versão brasileira dirigida por Alexandre Reinecke. No elenco, as atrizes Flávia Garrafa, Márcia Cabrita (1964-2017), Rosane Gofman e Carolina Parra e os atores Marat Descartes, Riba Carlovich e Sergio Guizé.

Todo mundo se divertia com as histórias dos seis personagens que sofrem de algum tipo de transtorno obsessivo compulsivo (TOC) e, à espera do médico, organizam uma terapia em grupo para driblar a ansiedade na antessala do consultório. Em uma época em que a patrulha politicamente correta não era tão intensa, ninguém se culpava de rir de assuntos delicados, e os palcos paulistanos ganhavam um novo sucesso em uma fase de apogeu das comédias.

Foto: Gisela Schlogel

Diretor em ascensão, Alexandre Reinecke vinha de experiências bem-sucedidas com diferentes dramaturgias e estilos de interpretações. Em 2002, ele foi notado ao comandar Beatriz Segall (1926-2018) e Miriam Pires (1927-2004) na comédia Quarta-Feira, sem Falta, Lá em Casa e, três anos depois, ganhou prestígio ao encenar Oração para um Pé-de-Chinelo, drama de Plínio Marcos (1935-1999), com Denise Weinberg e Norival Rizzo, os dois vencedores do Prêmio Shell pela peça, além de Marat Descartes.

Estrelada pelo galã Reynaldo Gianecchini no auge da fama, a comédia política Sua Excelência, O Candidato, de Marcos Caruso e Jandira Martini (1945-2024), abriu as portas para Reinecke estabelecer uma grife a partir de 2006. Ele se tornou garantia de entretenimento de qualidade e, desde então, mais de 50 peças levaram a sua assinatura, a maioria de pegada cômica e bem-sucedida nas bilheterias.

Toc Toc, aquela montagem de 2008, pode ser considerada até hoje o grande acerto de sua carreira. Tudo parecia perfeito e no seu lugar, inclusive o espaço do Culturinha, que, apesar do apelido, não era considerado pequeno e contribuía para o intimismo de uma sala de espera de consultório. O elenco dava um show, e Sergio Guizé, hoje popularizado pelas novelas da Rede Globo, foi notado por um público que não frequentava a cena alternativa, no caso a então efervescente Praça Roosevelt. Só que uma tragédia quase fez Toc Toc esfriar antes de chegar ao topo.

Foto: Gisela Schlogel

Em 17 de agosto de 2008, o Teatro Cultura Artística foi destruído por um incêndio. Na sala principal, batizada de Esther Mesquita, de 1156 lugares, o ator Marco Nanini protagonizava O Bem-Amado. Toc Toc ficou desalojado, e São Paulo sem uma das suas mais importantes e tradicionais casas de espetáculos. Só foi reaberta esse ano e com nova proposta, focada em concertos musicais.

Como um sucesso não pode ser aposentado, pelo menos não deve, os produtores de Toc Toc demonstraram agilidade para resolver o problema, mesmo com uma aposta arriscada. Um mês depois do incêndio, em 19 de setembro, a peça voltou ao cartaz no Gazeta, localizado na Avenida Paulista. Com mais que o dobro da lotação do Culturinha, o teatro era marcado por uma programação irregular e, muitas vezes, ficava às moscas. Toc Toc desfez a má fama e firmou o Gazeta como palco certeiro para outras comédias, algumas dirigidas por Reinecke, a exemplo de Como se Tornar uma Supermãe em Dez Lições (2012), protagonizada por Ana Lúcia Torre e Danton Mello. “Foi no Gazeta que começou o estouro de Toc Toc”, lembra Reinecke.

Em seis anos em cartaz, Toc Toc recebeu os aplausos de quase 400 mil espectadores em diversas salas de São Paulo, fez temporada no Rio de Janeiro e em outras oito cidades com diferentes elencos. Toda fórmula parece, um dia, se esgotar, mas Reinecke e o produtor Sandro Chaim encontraram justificativas capazes de trazer a peça novamente à tona e se comunicar fortemente com a plateia de hoje. Por que não remontar Toc Toc em um tempo em que a ansiedade tomou conta do planeta e, depois de atravessar uma pandemia, não são poucos aqueles que desenvolveram alguns transtornos?

Foto: Gisela Schlogel

Toc Toc estreou repaginado em 4 de outubro de 2024 no Teatro Procópio Ferreira, com um elenco praticamente todo renovado. Da encenação original aparece o ator Riba Carlovich no mesmo papel de Fred, que sofre da Síndrome de Tourette e solta palavrões nas horas mais descabidas, e a atriz Maria Helena Chira volta como Lili, a jovem que repete tudo o que fala. Ela substituiu Flávia Garrafa em uma das antigas temporadas.

O público aprovou a nova versão e quase 20 mil espectadores pagaram ingresso nos últimos dois meses, o que representa a lotação quase esgotada de 33 sessões. A peça pode ser conferida até o dia 22 e só pausa nos finais de semana de Natal e Ano-Novo – algo raro nas recentes temporadas. Em 4 de janeiro, a cortina se abre novamente para ver o que 2025 oferece de possibilidades.

Desta vez, Toc Toc conta com três nomes populares da televisão. Cláudia Ohana é a beata Maria, que, movida por uma fé cega, carrega a mania de verificação – sempre está preocupada se fechou a porta de casa ou se desligou o gás da cozinha. Associada a uma figura sensual nas novelas e no cinema, Cláudia era uma escalação improvável para o papel, interpretado por Rosane Gofman em 2008. Mas, justamente por causa deste imaginário que atravessa gerações, a artista brinca com o público e injeta doses de ironia no fervor religioso de Maria.

Foto: Gisela Schlogel

Danielle Winits representa Branca, originalmente apresentada por Márcia Cabrita, uma mulher que tem obsessão por limpeza e exagera nos cuidados com a higiene devido ao medo de contrair algum vírus – uma personagem que ganhou imensa atualidade depois da pandemia. Danielle, econômica nas piadas verbais e explorando a expressão corporal, demonstra compreender as sutilezas de um tipo com atitudes comuns à da grande maioria até uns três ou quatro anos em razão da crise sanitária.

O terceiro famoso do grupo é André Gonçalves, a principal surpresa do espetáculo por mostrar domínio cômico e capacidade de improvisação sem se descolar do resto do elenco. As cenas dele com Carlovich, no começo da peça, são ótimas. Gonçalves representa o motorista de táxi Vicente, um sujeito obcecado por cálculos, que não fecha uma frase sem recorrer aos raciocínios matemáticos. Em 2008, Vicente era Marat Descartes, que defendia muito bem o personagem, embora adotasse uma linha mais técnica.

Se em 2008 o pouco conhecido Sergio Guizé foi uma bem-sucedida aposta, o novo intérprete de Bob, Miguel Menezzes, também aparece como um válido investimento. Aos 25 anos, o ator sergipano viveu em Salvador, mora em São Paulo e participou do musical Viva o Povo Brasileiro, dirigido por André Paes Leme no ano passado. É dele o trabalho de composição mais visível, capaz de emprestar a Bob uma ingenuidade sem deixá-lo bobo. Com gestos calculados e uma imagem que se destaca, Menezzes sublinha detalhes que se sobressaem em meio ao grupo.

Foto: Gisela Schlogel

Delicadeza também é a mais forte característica de Maria Helena Chira na pele de Lili, uma linha próxima àquela que foi adotada por Flávia Garrafa no original. A interpretação de Maria Helena é marcada pela doçura, e Lili aparece como uma espécie de mocinha da trama, aquela por quem todos torcem para que supere o seu toc. Tanto que está nas mãos da atriz a cena mais emocionante. Em meio a uma terapia grupal, Lili compartilha suas inseguranças, admite diante dos demais que não consegue concluir a prova e recebe o carinho de Branca, que, devido ao seu pânico, jamais encostaria em outra pessoa.

No extremo oposto, o Fred de Riba Carlovich é o tipo mais perigoso de resvalar no estereótipo ou na vulgaridade. Com um texto dominado pelo excesso de palavrões, Carlovich solta as falas em um ritmo tão frenético que soa inusitado antes mesmo de espantar ou até constranger o espectador conservador. É o artista mais afiado com o tempo de comédia, resultado de uma intimidade conquistada junto ao personagem ao longo de anos, pronto para dissolver qualquer embaraço antes mesmo de o problema se impor. Por fim, a atriz Carolina Stofella é a secretária do aguardado médico e, com as restrições óbvias do pequeno papel, cumpre aparições pontuais sem desafios.

Numa conta rápida de cabeça, Reinecke calculou que, nos seis primeiros anos, uns trinta atores e atrizes passaram pelo elenco de Toc Toc. Sandra Pêra, Angela Barros, Andrea Mattar, Giuseppe Oristânio, Ariel Moshe, Cynthia Falabella, Gustavo Vaz, Dídio Perini, João Bourbonnais e Cris Bonna são alguns deles. Provavelmente essa grande rotatividade tenha levado Reinecke a entender que Toc Toc não é uma peça carregada nas costas por um ator ou uma atriz. Eles precisam ser bons comediantes, claro, porque respondem por personagens em que a caracterização é importante e uma boa dose de sensibilidade deve se fazer presente para ninguém pesar a mão nas piadas. O que vale, no entanto, é o texto.

Foto: Gisela Schlogel

Antes de cada substituição, o diretor pedia para que o ator ou atriz assistisse ao máximo de vezes que pudesse o espetáculo presencialmente e em vídeo e agendava pelo menos uma semana de ensaios com o novo titular junto ao elenco. “Tem que ser assim, ainda mais em uma comédia”, justifica ele.

Assim como prestava atenção na contribuição que cada um poderia dar ao trabalho, o diretor aprofundava sua visão em torno das características dos personagens – e, diante desta intimidade com as criaturas de Baffie, Reinecke se tornou um especialista em Toc Toc. Enxergou claramente que o grande mérito está na dramaturgia e, com o mínimo de dedicação, o intérprete rende o esperado para não se desnivelar do conjunto. Uma prova desta força da obra é que, a peça ganhou uma boa adaptação para os cinemas, realizada em 2017 pelo espanhol Vicente Villanueva.

Os seis personagens são, acima de tudo, humanos e não é difícil o espectador, mesmo entre uma gargalhada e outra, se espelhar nas situações expostas ao longo da peça. Até aqueles que nunca desenvolveram alguns daqueles tocs, podem ter passado por situações próximas – ainda mais durante ou depois da pandemia – e não se pode esquecer de que, em se tratando de comédia, há um certo exagero.

Por isso, Toc Toc sobrevive ao tempo e renova possibilidades de leituras. Sim, uma comédia, mesmo leve e popular, não precisa ser necessariamente tola. Bem dirigida e interpretada, a peça francesa em versão brasileira é uma receita difícil de desagradar ao grande público, que, muitas vezes, tem o direito de procurar o teatro e só esperar a oportunidade de dar boas risadas.

Nota: As informações e opiniões contidas neste artigo são de inteira responsabilidade de seu/sua autor(a), cujo texto não reflete, necessariamente, a opinião do INFOTEATRO.

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Dirceu Alves Jr.

Dirceu Alves Jr.

É jornalista, escritor e crítico de teatro, trabalhou em Zero Hora, IstoÉ Gente e Veja São Paulo e publicou os livros Elias Andreato, A Máscara do Improvável (Humana Letra) e Sérgio Mamberti, Senhor do Meu Tempo (Edições Sesc).

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