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Foto: Vivian Gradela
Foto: Vivian Gradela

2024 (re)visto pela força das interpretações de censura livre

Neste balanço do ano do teatro infanto-juvenil paulistano, o foco está nos elencos que se destacaram nos palcos com muito talento e inventividade. Confira.

Crítica Por Dib Carneiro Neto

Ah, o prazer de ver artistas em estado de graça no palco, encarnando diversidades, interpretando liberdades, entregando brilho e competência. Em São Paulo, 2024 foi farto de bons atores e boas atrizes reinando absolutos em obras de censura livre, no chamado teatro infanto-juvenil. Seja em monólogos que exigiam fôlego em tempo integral, seja no brilho harmonioso da arte coletiva, seja manipulando bonecos, seja contando histórias, seja portando nariz de palhaço – como foi encantador sentar o ano todo nas plateias matutinas e vespertinas e aplaudir elencos extraordinários a cada sessão.

Minha memória de crítico veterano se regozija a cada fim de ano em que um texto retrospectivo precisa ser tramado, à guisa de balanço. Revivo na mente (enquanto teclo palavras sempre insuficientes) todo o deslumbramento que esses bravos representantes do teatro paulistano para crianças me proporcionaram em 12 meses. Vamos começar? Claro, nem vou conseguir falar de todos. Vou tentar me lembrar dos maiores destaques. Que safra boa, que gente talentosa, que dedicação tocante a essa arte maior feita para menores!

Felicidade enorme foi ver uma atriz como Jackie Obrigon na pele de uma veterana diva de mais de 100 anos, em O Retrato de Janete. Jackie, com sua Bendita Cia., é um símbolo paulistano dessa dedicação resiliente ao teatro infantil. Como foi comovente vê-la neste monólogo, comemorando os 30 anos de sua carreira e 12 de sua companhia. Para quem acompanha sua carreira desde muito tempo, vê-la encarnar essa personagem em seu camarim de teatro leva a muitas memórias boas, muitas explosões de talento presenciadas, muita versatilidade a cada novo espetáculo, muita alegria que ela já proporcionou a mais de uma geração de crianças. Jackie é uma criança. Os anos lhe deram netos, mas não lhe roubaram o viço, a travessura, o gosto pela descoberta e pelos riscos.

Foto: Ronaldo Gutierrez

Como Jackie, outra vovó na vida real que se passa facilmente por menina no palco é Simone Grande, de As Meninas do Conto. Em Joana e o Príncipe Silencioso, Simone nos preencheu de camadas interpretativas riquíssimas, como exímia contadora de histórias que é. O espetáculo comoveu por mostrar Simone em plena forma, inclusive de dramaturga, e por transpirar no palco a história acumulada de afetos de uma das companhias mais criativas de teatro narrativo que o Brasil já conheceu.

Foto: Beto Amorim

Nessa linha de contação de histórias, outra peça que me enterneceu foi O Black Power de Akin, de Kiusam de Oliveira. Sentada no palco, lendo o livro que ela própria escreveu, Kiusam foi de uma presença magnética. O que ela fez com sua voz, seu corpo, sua emoção…eram pura revolução. Teatro narrativo da melhor qualidade. Nossa, mas alguém apenas lendo um livro?! Isso é teatro?! Sim, é muito teatro. Elaine Buzato, da cia. Tempo de Brincar, causava impacto semelhante com seu monólogo Vitalino, Teu Nome no Barro – uma atriz bem preparada, que “convocava” sua plateia para dentro do espetáculo, de forma plácida e afetuosa. Foi lindo de ver.

Foto: Divulgação

Em A Concha, com dramaturgia e direção de Mark Bromilow, foi incrível conhecer Isabela Santana, da etnia Pataxó, região do extremo sul da Bahia. Com comprovado lugar de fala, a protagonista fez dessa atração um projeto muito especial e pleno de credibilidade. Isabela é boa atriz e canta com muita graça e emoção. Contracenando com ela esteve o ator e cantor Joaz Campos, dono de uma voz potente e ao mesmo tempo doce, que dava ao espetáculo um ritmo narrativo bem pontuado e acolhedor.

Foto: Ricardo Camargo

Outro marcante trabalho de ator foi o de Tay Lopez, em As Pedras de Javier, do veterano grupo XPTO. Sozinho em cena, Tay era pura versatilidade e jogo de cintura, com excelente potencial vocal de narrador, ritmo e cadência de bom contador de histórias, carisma e simpatia, segurança e credibilidade. Um ator muito bem escolhido. Outro talentoso ator, sozinho em cena no horário vespertino, foi Carlos Escher, na pele de O Sapateiro Ruço. Escher tem estofo brechtiano, tem portes de príncipe e de mendigo, tem verdade nos olhos e no corpo, tem carinho pelo teatro narrativo, tem jeito pra lidar com objetos, tem rebolado de circo. Tudo isso se via em cena, num trabalho minucioso e dedicado.

As Pedras de Javier / Foto: Osvaldo Gabrieli

Stella Tobar, da Borbolina Cia., fez no palco o papel da própria filha, que teve de operar de adenoide (tirar pele do nariz para respirar melhor, explicando leigamente). O que ela quis mesmo foi fazer uma peça sobre a coragem. Desfiou canções, nos abraçou com prosa poética, brincou de ser criança, interagiu com telão, manipulou bonecos e objetos. Stella, com ótimos trejeitos de menina sapeca, felizmente sem exagerar, deu conta do que se propôs – e brilhou talvez como nunca. E o que dizer de Cecília Schucman, Rosana Araújo e Ericka Leal, revezando-se na pele de A Menina do Candeeiro?  Que trio harmonioso, quanta sintonia e entrega de afeto! Que delicadeza, que refinamento gestual e corporal! O jogo que se estabelecia entre elas era uma incrível aula de bom teatro.

Em Diário de Pilar na Amazônia, além da já atestada vivacidade de Miriam Freeland como Pilar, gostei demais de Sávio Moll como um professor aventureiro apaixonante, que usava seu carisma até para passear pela plateia, antes de a peça começar, e de Ludimila D’Angelis, no papel da menina indígena Maiara, com uma presença magnética, uma voz forte, uma segurança hábil, uma consciência rara do poder que ela tinha em mãos ao ter de falar dos povos originários.

Foto: Gal Oliveira

E o Mundo Suassuna, de Marcelo Romagnoli, talvez nem fosse assim tão ‘suassuna’ se não houvesse as presenças consistentes do trio de intérpretes, Fabio Espósito, Guryva Portela e Henrique Stroeter . Os três fazem nada menos do que 12 personagens, um melhor do que o outro. Pontos altos (como se a peça toda já não fosse completamente acima da curva) são o tenente Zé Garcia, o palhaço Gregório, a onça dançando Macarena, a dupla de caveiras, a morte Caetana, o cavalo marinho Pantero, o casal Benedito e Marieta. Ufa. Foi prazeroso ver o efeito desses personagens produzidos na plateia, sobretudo as gargalhadas espontâneas das crianças.

Foto: Andressa Costa

Toda a grandeza de uma companhia, corajosa e desafiadora, esteve contida em Azul, espetáculo de bonecos sobre a delicado aprendizado de uma menina para lidar com o irmãozinho portador de transtorno do espectro autista. O elenco de atores-manipuladores da Artesanal Cia. de Teatro deu um banho de técnica a serviço da emoção. Quanta precisão. Que baile! São eles: Alexandre Scaldini, Brenda Villatoro, Bruno de Oliveira, Carol Gomes (stand in), Marise Nogueira e Tatá Oliveira. É tão harmônico o conjunto, mas vale a pena falar de Brenda Villatoro como a menina Violeta, em um momento inspirado e antológico. Uma grande criação de intérprete.

Foto: Vivian Gradela

E lá vem outra pérola de elenco bem entrosado: Geni Cavalcante, João Invenção e Mawusi Tulani, em Uma Boneca para Menitinha. Eram três iluminados em cena, contando uma história divertida que valorizava a memória e a ancestralidade. Beleza pura tambem foi ver um programa educativo da televisão virar bom teatro, A Incrível Viagem do Quintal, graças a um elenco muito bem escolhido, que defendeu com garra os personagens já conhecidos da TV:  Helena Ritto, Jonathan Faria, José Eduardo Rennó, Mafalda Pequenino e Fernanda Ventura.

Foto: Priscila Prade

Outra menção coletiva especial deve ser feita aos Palhaços Sem Fronteiras, que ergueram a lona para um espetáculo que já se define no título, Memorável. Aline Moreno (a palhaça Donatella Afonsina), Arthur Toyoshima (o Jean Pierre), Renato Ribeiro (Claudius) e Tetê Purezempla conjugaram vários verbos em cena, como emocionar, cantar, dançar, equilibrar, tropeçar, rebolar, pular, palhaçar. Um quarteto empático, que funcionou bem no coletivo e também rendeu bastante nos momentos solos. Eles nos transmitiam paz, embevecimento, vontade de abraçá-los, de tê-los como amigos. Leves e acolhedores. Que delícia de espetáculo afetuoso.

Foto: Ricardo Avelar

Por sua vez, Operilda Cai no Choro foi um oásis de afeto neste mundo turbulento de algoritmos e multitelas. Repetindo um papel muito bem sucedido em sua carreira, Andrea Bassitt dominou o palco demonstrando todo o seu amor pela personagem e sua garra em divulgar a música genuína brasileira. Ela é outro caso de puro carisma, que inundou 2024 de esperança. E por falar em esperança, um trio brilhou ao tratar de um tema muito necessário para a formação de nossas crianças, a cidadania. Lígia Campos, Kleber Brianez e Rani Guerra, do Esparrama, praticaram ao ar livre, em Acorda!, a potência dos números clássicos de palhaçaria e improviso. Um trio e tanto, com jogo de cintura, sintonia fina, alegria contagiante.

Foto: Sissy Eiko

Mais um trio? Sim, com muito talento. As atrizes Arami Arguello, Lilian Regina e Vicka Matos fizeram de Trilha para as Estrelas uma agradável brincadeira educativa e ecológica. As três se entenderam muito bem no palco, provocando empatia imediata na plateia. Debochadas na medida certa, irônicas quando era preciso, carismáticas, sapecas, marotas, também um pouco maternais umas com as outras – e livres, sobretudo livres.

Foto: Leticia Vieira

Um jogo constante e simbólico entre palavra, imagem e ação. Foi o que nos proporcionaram as atrizes da Cia. Paideia, com seu Pepé e Carmela, continuação de Pepé, O Pequeno Palhaço, de 2021. Vivido com acertada fisicalidade e intensa entrega por Ana Luiza Junqueira, Pepé desta vez ganha uma amiga, Carmela, interpretada por Melina Marchetti, que também cumpriu com louvor o seu papel, alternando tons de empatia, afetividade, maternidade, compaixão e amizade. Bela dupla, com sensibilidade a toda prova.

No grandioso História Sem Fim, o elenco também arrebentou de talento. Voos, dancinhas, lutas de espada, choros, risos, cortejos… Sutilezas e delicadezas. Havia pérolas de interpretação o tempo todo, desfilando à nossa frente. Detalhes que fizeram toda a diferença. Minúcias que tanto demonstravam o rigor da direção (Carla Candiotto) com seus intérpretes escolhidos, quanto comprovaram o talento inegável desses bravos artistas: Camila Cohen, Carol Badra, Eric Oliveira, Ernani Sanchez, Thiago Amaral, Victor Mendes. Elencaço irrepreensível.

Ai, ai, ai. Será que me esqueci de alguém? Grande chance… Mas, em todo caso, feliz ano novo, leitores do InfoTeatro! .

Nota: As informações e opiniões contidas neste artigo são de inteira responsabilidade de seu/sua autor(a), cujo texto não reflete, necessariamente, a opinião do INFOTEATRO.

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Dib Carneiro Neto

Dib Carneiro Neto

Jornalista, dramaturgo e crítico teatral. Começou a escrever críticas sobre teatro infantil em 1990, na revista Veja São Paulo. Foi editor-chefe do caderno de cultura do jornal O Estado de S. Paulo (2003 a 2011). Atualmente, edita o site e canal do youtube Pecinha É a Vovozinha, que ganhou o Prêmio Governador do Estado em 2018, na categoria Artes para Crianças, além de menção honrosa no Prêmio Cbtij. Por sua peça Salmo 91, ganhou o Prêmio Shell de dramaturgo em 2008. Em 2018, ganhou o Jabuti pelo livro Imaginai! O Teatro de Gabriel Villela.

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