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Foto: HELOISA BORTZ
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“12º Round: A História de Emile Griffith” amplia a tragédia de um pugilista como retrato social e comportamental dos desfavorecidos

Dirigida por Bruno Lourenço, a peça escrita por Sérgio Roveri com base na biografia do boxeador trata de homofobia, racismo e desigualdades

Crítica Por Dirceu Alves Jr.

Com expressiva carreira na imprensa, o jornalista Sérgio Roveri, de 64 anos, deu a largada a uma transição para a dramaturgia no início da década de 2000. Vozes Urbanas (2003) e O Horário de Visita (2004), dirigidas respectivamente por Paulo Barcellos e Ruy Cortez, foram suas primeiras peças encenadas. Roveri logo se firmou como um promissor nome daquela geração e, em 2007, faturou o Prêmio Shell de melhor autor por Abre as Asas Sobre Nós, um mergulho no universo marginal, inspirado no conto Bárbara, de Drauzio Varella.

A escrita autoral de Roveri, com o passar dos anos, ganhou uma importante característica que dialoga com a sua experiência jornalística. Baseado em personagens reais, ele criou histórias que, entre traços biográficos e ficcionais, desvendam facetas pouco conhecidas de celebridades. Sob a direção de José Roberto Jardim, ele teve montadas as peças Aberdeen – Um Possível Kurt Cobain (2012) e Chet Baker – Apenas um Sopro (2016), que colocaram em cena o ator Nicolas Trevijano e o roqueiro (e ator) Paulo Miklos como intérpretes, respectivamente, do vocalista do Nirvana e do trompetista de jazz. Outro exemplar desta linhagem é o solo Palavra de Rainha, sobre Maria, a Louca, mãe de Dom João VI, em encenação de Mika Lins protagonizada por Lu Grimaldi em 2014.

Foto: HELOISA BORTZ

Nasceu nesta época, meados da década de 2010, a peça 12º Round: A História de Emile Griffith, que sai agora do ineditismo com o espetáculo dirigido por Bruno Lourenço em cartaz no Teatro do Sesc Ipiranga, em São Paulo. Em 2013, Roveri leu na Folha de S. Paulo o obituário do pugilista Emile Griffith (1938-2013), dono de cinco cinturões mundiais, mas que lhe era totalmente desconhecido. Uma informação, bastante destacada na matéria, porém, despertou a curiosidade do leitor. Griffith foi o primeiro boxeador a assumir a bissexualidade, e o preconceito rendeu uma virada trágica em sua biografia.

Conforme o público se acomoda nas poltronas do Sesc Ipiranga, os atores Alexandre Ammano e Fernando Vitor se aquecem no centro do palco como se, em poucos minutos, fossem subir em um ringue. A atriz Letícia Calvosa, nas extremidades da cena, se exercita, pula corda ou se coloca como espectadora do iminente duelo. O prólogo antecipa significados da montagem e de um esporte de características bem definidas. Através de socos calculados e corpos suados, a atenção da plateia é testada com coreografias de múltiplos sentidos que remetem a uma luta capaz de despertar sentidos para a violência e a sensualidade.

“Esse é um mundo de homens”, diz Alexandre Ammano, como o seu personagem, o cubano Benny Kid Paret (1937-1962), sem que o espectador ainda possa entender claramente o que vira pela frente. Kid Paret está em uma cama de hospital e, em breve, a morte o nocauteará sem que ele realizasse dois projetos relativamente simples: aprender a falar inglês e abrir um açougue em Miami.

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Este monólogo inicial evidencia a simplicidade de um sujeito que acabou em um ringue empurrado por uma pequena ambição. A cada luta vencida, talvez ele pudesse ser visto com um pouco mais de respeito mesmo não dominando o idioma do país em que vive e, de quebra, juntaria alguns tostões para inaugurar um negócio próprio.

A mentalidade de Emile Griffith, o protagonista da vez na dramaturgia de Roveri, interpretado pelo ator Fernando Vitor, não era muito diferente da daquele que foi o seu maior adversário. Nasceu em uma ilha caribenha, viu a mãe deixar a casa em busca de melhores condições e, nos Estados Unidos, muito jovem, confeccionava chapéus femininos em uma loja.

Os músculos do garoto chamaram a atenção de um dos seus chefes que o levou a uma academia de boxe. Apesar das mãos delicadas e da postura gentil, Griffith socava bem e, mesmo que aquele nem de longe tenha sido um sonho, ele viu abertas as portas do mundo dos pugilistas e não se recusou a entrar.

Bem, mas como Roveri descobriu naquele obituário do jornal, Griffith era bissexual. A mídia até se esforçava para mostrá-lo ao lado de moças identificadas como namoradas ou noivas, mas eram os rapazes quem mais despertavam o seu desejo.

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Negro, pobre e gay em um universo sustentado pelo estigma da virilidade, não tardou para que a homofobia rendesse um episódio trágico para o personagem da vida real. Em 1962, Griffith derrotou Kid Paret depois de um nocaute tão brutal que levou o adversário à morte dez dias depois. Foram 17 golpes em cinco segundos.

Nada justifica uma morte gerada por tamanha agressividade, ainda mais em uma competição esportiva. Só que a explosão de ódio foi consequência de um limite testado ao extremo e que foi extrapolado. Paret, com o objetivo de abalar emocionalmente o colega, abusou da violência psicológica, ofendendo-o de “maricón”, entre outros adjetivos, nos bastidores da partida.

A dramaturgia de Roveri, reforçada na encenação de Lourenço, é marcada por uma neutralidade em relação aos personagens que ampliam a sua capacidade de identificação. Os nomes de Griffith e Paret são bem menos mencionados do que poderia sugerir um texto calcado em obviedades, assim os dois lutadores deixam de ser os tipos reais para se tornarem próximos a qualquer indivíduo que possa atravessar situações relativas às discriminações.

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12º Round: A História de Emile Griffith é uma história de sobreviventes, de minorias que se salvam enquanto podem através de caminhos que não necessariamente sonhariam trilhar. Sonho, aliás, é uma palavra que nem passa pelas suas cabeças, e o destino vai tratando de guiá-los. “Nós dois não passamos de dois garotos que se afastaram demais do sol”, diz Vitor, como Griffith, em uma cena, comparando o frio de Nova York às temperaturas tropicais de seus lugares de origem.

Em Aberdeen – Um Possível Kurt Cobain, Roveri idealizou uma projeção do ídolo do Nirvana nas horas seguintes a sua morte, enquanto em Chet Baker – Apenas um Sopro, o jazzista aparece fragilizado em uma tentativa de volta ao meio artístico três anos depois de ter sofrido uma agressão que lhe deixou impedido de tocar seu instrumento.

A violência também é o mote de 12º Round: A História de Emile Griffith, mas aqui ela se espalha por contextos sociais, comportamentais e políticos em um país que nunca fez questão de colocar a igualdade em prática.

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Como em uma narrativa de memórias, a história dos personagens vem à tona. Kid Paret, que faz a sua viagem biográfica enquanto se despede da vida no leito hospitalar, se torna o elemento desencadeador desta tragédia tão humana. Griffith está velho, debilitado e eternamente assombrado pelo passado em uma poltrona do seu humilde apartamento enquanto revê os fatos entre a resignação e a culpa. “As pessoas precisam aceitar que eu sou normal”, diz, lá pelas tantas. Mas você é normal”, ouve de um interlocutor. “Eu sei, mas não para um lutador de boxe.”

No papel do protagonista, Fernando Vitor surpreende pela capacidade de atravessar a cronologia de Griffith com uma suavidade e uma delicadeza que não é o que se espera de um pugilista. Mas, desta forma, é fiel à personalidade do boxeador, o que se torna um empecilho para um entendimento imediato do personagem, principalmente no começo da peça. Só à medida que a história é esmiuçada e fica evidenciado o caráter de Griffith se entende a cuidadosa interpretação e o quanto é complementar à dramaturgia.

Mais favorável à exploração de diferentes recursos é o trabalho de Alexandre Ammano, que se destaca entre a humanidade e a impetuosidade de Paret, além de ter a versatilidade aprovada em outros tipos, como um namorado adolescente do protagonista. Com menos chances, ainda que carregue uma presença marcante, a atriz Letícia Calvosa representa as personagens femininas que se inserem ao longo da trama e se destaca principalmente na delicada performance como a mãe de Griffith.

Estreante na direção, o ator Bruno Lourenço, que vem do recente protagonista em Brás Cubas, espetáculo da Companhia Armazém de Teatro, mostrou a compreensão do universo retratado na peça. Como encenador, construiu com desenvoltura uma narrativa visual, complementada pela iluminação de Ariel Rodrigues, mesmo diante de uma simples direção de arte assinada por Maíra Sciuto e Natália Burger. No cenário, o elemento mais bem resolvido é a estrutura que serve tanto para cama como ringue.

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Um dos méritos de Lourenço é saltar de cenas lineares e convencionais, quase todas apoiadas basicamente em monólogos ou diálogos, para trechos de grandes efeitos, como arrebatador desfecho que extrai reações inesperadas e eufóricas da plateia. Para isso, o encenador – que também é o diretor musical – conta com um recurso infalível para a maioria dos espetáculos, uma trilha sonora que encontra reverberação na memória afetiva do público.

Assim, se Griffith e Paret, na maioria das vezes, não são vistos pelos espectadores apenas como aqueles dois pugilistas, mas como projeções de muitos pretos e desfavorecidos, quando estouram canções clássicas que embalaram a vida de diversas pessoas, as situações passam a refletir vivências alheias. A tragédia do boxeador vítima de preconceito vira um retrato social e comportamental.

Esta é uma capacidade da escrita jornalística de Roveri convertida em dramaturgia teatral. O autor vai da crítica coletiva ao drama existencialista sem se esquecer de que deve atingir qualquer pessoa que pagou por um ingresso. Para isso, é claro, objetivo mesmo quando recorre à poesia e preocupado – coisa rara, aliás – em transmitir ao público informações para que cada um tire as próprias conclusões.


Nota:
As informações e opiniões contidas neste artigo são de inteira responsabilidade de seu/sua autor(a), cujo texto não reflete, necessariamente, a opinião do INFOTEATRO.

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Dirceu Alves Jr.

Dirceu Alves Jr.

É jornalista, escritor e crítico de teatro, trabalhou em Zero Hora, IstoÉ Gente e Veja São Paulo e publicou os livros Elias Andreato, A Máscara do Improvável (Humana Letra) e Sérgio Mamberti, Senhor do Meu Tempo (Edições Sesc).

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