Em pouco mais de meia hora de conversa com a atriz Mel Lisboa e com o ator Marcello Airoldi fui arrebatada pela curiosidade de assistir à montagem brasileira de Misery.
O romance, Misery – Louca Obsessão, foi escrito nos anos 1980, pelo autor norte-americano Stephen King. Posteriormente, ganhou versão para o cinema, assinada por William Goldman. E, agora – pela produção e realização de Bruna Dornellas, Wesley Telles e WB Produções –, o texto será encenado também nas tábuas do nosso teatro.
Após sofrer um grave acidente automobilístico, o famoso escritor Paul Sheldon (interpretado por Marcello Airoldi), é resgatado pela enfermeira Annie Wilkes (interpretada por Mel Lisboa). Autointitulada a principal fã do autor, Annie se revolta com o desfecho trágico da personagem de um dos bestsellers de Sheldon e o submete a uma série de torturas e ameaças. A relação entre fã e ídolo se torna caótica, doentia e até perigosa. O enredo se constrói a partir dessa interação entre eles. Vale conferir! Agora espiem só como foi nossa conversa:
NATÁLIA BEUKERS: Por que assistir Misery?
MEL LISBOA: O mais importante é que se trata de um grande texto, com personagens verdadeiramente instigantes. É muito envolvente, de uma dramaturgia muito bem construída. E a gente, como espectador, vai sendo levado, conduzido por essa estória. Eu acho que essa é uma das grandes vantagens do teatro, capturar o público para dentro da trama, e essa peça é muito potente nesse sentido. E a direção do [Eric] Lenate é brilhante. Uma peça de suspense que, de fato, gera essa tensão para o espectador – assim como no cinema, em que somos levados por essas sensações. Acho que a peça faz isso, e com louvor. O espectador de teatro gosta, normalmente, de ser arrebatado por uma estória. De ter esse combinado entre palco e plateia e embarcar na estória que está sendo contada, como um acordo mesmo.
MARCELLO AIROLDI: Tem uma coisa que também é fundamental, especialmente no olhar que o [Eric] Lenate está imprimindo ao trabalho, que é a atemporalidade do texto. Falo isso, inclusive, para fazer uma relação com o filme que foi um grande sucesso nos anos 1990. Você conseguir dialogar, de forma contemporânea, com o que acontece hoje, com a revolução do pensamento sobre machismo, feminismo, misoginia, num texto que é antigo, com a sutileza que o [Eric] Lenate está propondo… É um diálogo muito interessante entre duas personagens, duas loucuras, um homem e uma mulher. A ideia de a mulher ser a louca não existe nesta montagem, muito pelo contrário.
ML: Isso está na direção dos atores, em pequenas adaptações, está em complexificar essas personagens, de não as deixar em um nível superficial, maniqueísta. É sobre achar a relação entre essas personagens e até que ponto a loucura de um não é, também, a do outro. Quando você começa a entender as motivações dessa mulher, e até sofrer com algumas escolhas que ela faz, você humaniza a personagem, pois nós cometemos erros. Ela não é uma louca.
MA: Isso talvez tenha ficado marcado em algum momento da história desse texto, mas tenho muita felicidade de olhar para estes personagens com um olhar completamente novo. A dramaturgia precisa dialogar com o que está acontecendo no seu país, com o momento histórico que estamos vivendo. Não estou falando em sempre adaptar as peças para o tempo atual, mas o diálogo da dramaturgia e da encenação, tem de ser potente na comunicação com o espectador. Quando o público sai de casa e vai ao teatro, já são pessoas de coragem. Porque, para ir ao teatro você precisa ter coragem, você precisa se levantar e sair! Assim como nós, atores, também temos uma luta muito grande para fazer teatro neste país. Então, o teatro é um encontro de corajosos. Os personagens ficam enclausurados, meses juntos. Passa inverno, a neve derrete, vem o sol… muito tempo. É uma dramaturgia que conta uma história muito longa da vida desses personagens. Mas, dentro disso, há sempre respiros cômicos, pois são dois seres humanos. Então têm situações que são muito engraçadas, outras bastante trágicas. Acho o espetáculo muito rico nesse sentido: você acha que ele está indo por um lado, mas, daqui a pouco, é pego de surpresa.
Como a classe teatral pode se articular neste momento que estamos vivendo?
MA: Eu acho que uma parte da classe tem se articulado de alguma forma. Se pensarmos em quantos espetáculos estão voltando em cartaz agora, tudo o que aconteceu durante a pandemia em termos de “teatro online/virtual”, ou nessa comunicação em que nós, artistas, descobrimos, inventamos, redescobrimos e começamos a usar como ferramenta. Enfim, a gente nunca se desmobilizou. Então, de alguma forma, essa atitude nunca nos faltou. Talvez em termos políticos, mais partidário, falte alguma organização. Mas tem muitos grupos fortes, potentes, que lutam – mais diretamente, na linha de frente –, e combatem essa ignorância política contra a cultura. Tem gente que tenta criar programas, atividades, ações paralelas à inação do governo. Talvez falte mais conversa entre a gente. Mas, o fato de você colocar uma peça em cartaz, já é um grito muito poderoso. Para continuar dizendo que isso é importante, que cultura é fundamental.
ML: Existem alguns movimentos, que foram criados durante esse processo que estamos vivendo, de sucateamento da cultura, em que vimos que é preciso unir forças, é preciso que a gente lute por questões e direitos, para que possamos gritar juntos a fim de que nossa voz seja ouvida. Então há movimentos importantes, que estão acontecendo agora, para que a gente resista. Porque vamos resistir, disso eu tenho certeza. Teatro, então… teatro não vai acabar nunca. Eu acho, sinceramente, que só vai acabar o teatro quando não houver mais vida humana. Pode mudar o formato, passar por momentos de dificuldades, de glórias, mas sempre vai haver teatro. Estamos em um momento difícil, mas é o que o “Cello” [Airoldi] falou, colocar uma peça em cartaz é um ato de resistência, é dizer que isso é importante e eu reitero isso estando no palco, para mim e para quem está assistindo. Vamos seguir, tropeçando, de vez em quando tendo algumas vitórias, mas resistindo, sempre.
A peça Misery entrará em cartaz a partir do dia 4 de fevereiro, no Teatro Porto Seguro. Foi um prazerfalar com esses grandes atores sobre teatro edivulgar a montagem que já estou ansiosa para assistir. Outros trechos da entrevista que acabaram não entrando aqui poderão ser vistos, em breve, no Infoteatro (@infoteatro_ para quem quiser saber mais. E que em 2022 possamos ir a mais peças de teatro, para nunca esquecer que cultura é, sim, essencial para o fortalecimento de uma nação!
SERVIÇO: Misery: Teatro Porto Seguro – Al. Barão de Piracicaba, 740, Campos Elíseos,São Paulo. Vendas: www.sympla.com.br/teatroportoseguro; em cartaz a partir do dia 4 de fevereiro até 27 de março de 2022
Este texto foi, originalmente, publicado no site da revista Vogue Brasil, dentro do segmento ‘Gente’. Para acessar a publicação original, clique aqui.