Ruth de Souza (1921-2019) é uma atriz insubstituível para a história da televisão, cinema e teatro nacional. Importante não só por sua coragem e força para ocupar determinados espaços, mas por seu talento e profundo entendimento do ofício de um artista. Portanto, não poderia deixar de falar sobre ela neste espaço.
Na maioria das colunas que escrevo para Vogue Gente, faço uma pesquisa prévia sobre o assunto que desejo tratar. Em muitos temas, a pesquisa acaba sendo irrelevante, em razão do pouco material disponível. Há outras ocasiões, no entanto, em que me surpreendo positivamente com a quantidade de material existente, e acabo estudando por horas, com curiosidade; foi o caso da coluna de hoje.
Ao pesquisar sobre o centenário da atriz Ruth de Souza, encontrei reportagens, artigos, homenagens. Este ano, por exemplo, o jornalista Ygor Kassab publicou biografia que conta sobre sua vida e obra. O livro ganhou o título Ruth de Souza: a menina dos Vaga-Lumes! – 100 anos de história. Depoimentos de Ignácio de Loyola Brandão, Amir Haddad, Léa Garcia, Zezé Motta, Haroldo Costa, Renata Sorrah, Karin Rodrigues, Nicette Bruno e da própria Ruth de Souza, entre outros, compõem a obra.
Sobre o livro, o autor explicou: “Meu encantamento veio do fato de ela sempre ter uma força humana e artística diante de uma realidade social tão conflitante”.
Também neste ano, aconteceu a terceira edição do Dona Ruth: Festival de Teatro Negro de São Paulo, criado ainda quando a atriz era viva, em 2019, a fim de promover o encontro, a expressão, a reflexão e o diálogo entre artistas, grupos e público dedicados aos teatros negros.
Recentemente, véspera do Dia da Consciência Negra (19/11), o teatro do Parque das Ruínas, em Santa Teresa – RJ, passou a se chamar Teatro Municipal Ruth de Souza, em homenagem a ela. Para celebrar a eternização do nome da artista, a cantora Áurea Martins, com participação da atriz Valéria Monã, realizou show nesse mesmo dia.
Porém, em determinado momento de minha pesquisa, indaguei a mim mesma se, em razão de sua importância, há enfoque suficiente sobre a carreira da atriz e na medida de sua grandeza. A resposta foi um rotundo não!
Mesmo que neste ano – com mais efervescência em maio, mês de nascimento da atriz –, tenha havido alguma comemoração em razão de seu centenário, em geral, se fala pouco – ou menos do que se deveria – da trajetória da grandiosa Ruth de Souza e da importância da sua luta para as artes cênicas brasileira.
Em julho deste ano, escrevi uma coluna sobre o TEN – Teatro Experimental do Negro. Em determinada parte do texto, citei essa grande atriz, mas deixei de lado dados importantes e que merecem destaque: Ruth de Souza foi a primeira atriz negra a atuar no palco do Teatro Municipal do Rio de Janeiro: somente em 1945, na peça Imperador Jones, do dramaturgo norte-americano Eugene O’Neill (1888-1953), é que uma atriz negra teve a oportunidade de subir nas tábuas mais famosas da capital carioca.
Ruth de Souza também foi a primeira atriz negra a protagonizar uma novela televisa, como em Cabana do Pai Tomás (Rede Globo, 1969). Antes disso, em 1954, tornou-se a primeira atriz brasileira a ser indicada a um prêmio internacional de cinema, no Festival de Veneza, na categoria de Melhor Atriz, por sua interpretação em Sinhá Moça.
A primeira isso, a primeira aquilo, a primeira muitas vezes e a duras penas… Quantas Ruths o País foi capaz de acolher no último século? Quantas atrizes foram inspiradas por essa grandiosa dama do teatro e das telenovelas? Quantas meninas viram em Ruth a possibilidade de se tornarem o que sempre sonharam ser?
Por isso, a importância e necessidade de comemorar com mais ênfase o centenário e carreira de uma das maiores precursoras do nosso teatro.
O respeito à trajetória dessa atriz deve ser cultuado na medida em que a atual geração se sirva de seu extenso trabalho para as brasileiras. Mas, não menos relevante, é a importância da manutenção da memória de sua carreira para inspirar a todos que se dedicam às artes dramáticas e que pelejam por seu espaço. Foi um exemplo superlativo de coragem e força de uma mulher, negra, filha de lavrador e de lavadeira, que se tornou uma das maiores atrizes do Brasil.
Sobre a importância da representatividade, no dia da morte de Ruth de Souza, 28 de julho de 2019, aos 98 anos, a atriz Taís Araújo escreveu em suas redes sociais:
“Ela veio antes de todas nós. Ela veio antes da Chica Xavier, ela veio antes da Lea Garcia, antes da Zezé Motta. Ela veio antes de muitas antes de nós. Sempre com um talento arrebatador, um profissionalismo pra se destacar, um encanto e um respeito pela profissão, quando essa profissão não era respeitada, quando atrizes não eram respeitadas nem admiradas. Ela abriu todas as portas, ela escancarou essas portas.”
Cumpre salientar que a luta contra o racismo foi também um marco ao longo de sua caminhada. O posicionamento ativo de Ruth pelas pautas raciais sempre esteve presente em sua carreira, numa época em que era impensável para uma jovem negra sonhar com o palco. Ruth de Souza não apenas sonhou, mas conquistou seu espaço e brilhou, iluminando o caminho para tantas outras que vieram depois. Grupos teatrais foram influenciados e abençoados por essa grande atriz, como Cia. Os Crespos, O Bonde; assim como a dramaturgia de Maria Shu, Grace Passô e Luh Maza.
Nunca esqueçamos de comemorar seu legado e de dar graças à oportunidade de ter existido uma artista do calibre de Ruth de Souza entre nós!
Este texto foi, originalmente, publicado no site da revista Vogue Brasil, dentro do segmento ‘Gente’. Para acessar a publicação original, clique aqui.