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Guilherme Sant’anna: Conheça a trajetória de um dos maiores atores da cena teatral brasileira

Coluna Por Natália Beukers

Quando penso em um grande ator de teatro imediatamente me vem à cabeça o impecável Guilherme Sant’Anna. Dono de uma voz inconfundível, Guilherme é um dos maiores atores desses tempos. Nascido em São Paulo, mas indo morar com a família no Rio de Janeiro ainda criança, com mais de 40 anos de carreira, tornou-se referência para muitos que acompanham o seu trabalho.

Fui sua aluna – pois, além de ator, é excelente professor de teatro – e, anos mais tarde, tive a honra de estar com ele no palco em O Jardim das Cerejeiras (de Anton Tchekhov), com direção de Eduardo Tolentino de Araujo. Não há alegria maior do que dividir a cena com um mestre, na mais elevada acepção da palavra. Hoje, temos uma amizade que pretendo cultivar para sempre. Cada palavra trocada com Guilherme é um ensinamento de vida.

Por conta das quase três horas de conversa que tivemos, e de muitas gargalhadas – Guilherme tem uma das risadas mais contagiantes que já ouvi – precisei selecionar apenas algumas partes de sua história para compartilhar com os leitores de Vogue Gente. Tratando-se de sua trajetória, há muito mais o que dizer e, neste caso, divulgarei outros trechos do nosso bate-papo no Instagram do INFOTEATRO.

Com vocês, Guilherme Sant’Anna:

O primeiro contato com o teatro
“A primeira vez que eu fiquei boquiaberto foi quando minha mãe me levou para assistir a Bibi Ferreira, no musical Hello, Dolly!. Eu nunca havia me sentido tão impactado com o teatro. Neste espetáculo entrava um trem em cena! Imagina a cabeça de uma criança… eu fiquei encantado com aquilo. Mas nunca pensei em me ver lá.

Influências da família
“Minha mãe adorava cantar. Ela queria ser cantora, queria de verdade, tem alma de artista! E quando conheceu o meu pai, ela percebeu que não ia dar certo. Meu pai nunca a proibiu de fazer nada, mas, enfim, casaram-se e ela esqueceu o assunto. Depois que os filhos vieram, nós somos em seis, ela nos levou para assistir A Noviça Rebelde, no cinema. Então ela voltou para casa e cismou que ia nos ensinar a cantar, queria fazer um coral! Começamos cantando as músicas do filme. A gente odiava aquilo, era um horror. Quando ela falava: ‘vamos ensaiar’, fugia cada filho para um canto, até ela conseguir juntar todo mundo, mas juntava e fazia, porque ela era danada.

Meu pai adorava música clássica. Minha mãe gostava de bolero, samba-canção. Eles cantavam e dançavam muito em casa. Então eu tive uma estrutura familiar muito permeada por essas coisas. Quando eu ficava na casa da minha tia, ela reunia a garotada e, de noite – para dormir – colocava disco de ópera para a gente ouvir, e ia contando a estória, de acordo com as músicas. Eu cresci nesse ambiente. Eu tive uma família muito bem estruturada. Meu pai já faleceu, mas minha mãe está aqui, firme; meus irmãos são unidos. A gente se gosta, se admira, eu acho que tive muita sorte com isso…”

Guilherme Sant’Anna em Mandrágora (Foto: Acervo Pessoal / Divulgação)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Início da carreira
“Minha primeira peça foi em um clube. Eu não era sócio, mas era amigo dos filhos do dono. Resolveram fazer uma oficina de teatro paga a parte, mas eu não tinha dinheiro, então eles conseguiram que eu participasse como ouvinte. Mas, em uma das apresentações, um dos participantes ficou doente e aí todo mundo olhou para mim, assim acabei substituindo-o. Foi a minha primeira peça, fazendo o lobo-mau, meu primeiro papel!

Minha prima foi assistir e perguntou se eu não tinha vontade de seguir – ela já fazia teatro no O Tablado [escola de teatro do Rio de Janeiro]. Aí eu fui, de gaiato no navio. Fiz uma aula. A professora perguntou se eu não queria continuar. E em uma das peças de final de ano, o ator Rogério Fróes foi assistir. Ele estava montando a peça infantil O Soldadinho de Chumbo, precisava de um ator e me chamou. Depois disso, nunca mais parei.

Nessa época, o pai de uma menina do elenco de O Soldadinho de Chumbo, iria produzir um espetáculo para ela. Ele tinha dinheiro, alugou o teatro da Gávea, o máximo dos máximos! E eu participei. Nessa peça eu recebi a minha primeira crítica… que foi péssima! Eu tenho aqui até hoje, saiu no jornal! Dizia que o grupo era muito ruim, e que um dos atores – eu – era um ator “tabiti-tabiti”, que não sabia falar direito, que ninguém entendia o que dizia. Essa frase ficou na minha cabeça, até hoje… ator “tabiti-tabiti”. Aquilo me marcou de um jeito que pensei: nunca mais vou fazer teatro na vida, essa mulher acabou com a minha carreira. Resolvi fazer outra coisa.

Então, entrei para a faculdade de História, na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Conheci muita gente lá… a Glória Perez era da minha turma! Isso em plena ditadura militar. Mas eu não terminei História e, apesar de tudo, continuei atuando. No último semestre larguei o curso, que já não aguentava mais. Tinha os ensaios das peças – eu já estava emendando uma peça na outra. Aí falei para o meu pai que eu não tinha condições de terminar a faculdade e que era o teatro que eu queria mesmo – nem sabia se queria mesmo, mas foi uma boa desculpa. No início, ia por causa da farra, porque era divertido! Isso foi nos anos 70, antes da AIDS… não tinha freio nenhum, era uma esbórnia. Depois, já em São Paulo, me formei em Arte e Educação e me tornei professor universitário. Meu pai ficou muito feliz, realizado, mas essa é outra história…

Hoje eu posso ter essa tranquilidade, de me encontrar, de saber o que é bom para mim, ter essa vida mais espiritual, essa busca, porque eu já passei tudo o que eu tinha que passar lá atrás. Eu vivi tudo que eu tinha para viver, na época que eu tinha que viver. Que engraçado isso, a vida é sábia, ela vai direcionando a gente…

Tempos depois, fui chamado para fazer uma grande peça, um grande espetáculo, que foi As Quatro Patas no Poder. Essa montagem reuniu muitos atores egressos do Tablado. Foi onde conheci Miguel Falabella, Diogo Vilela, Maria Padilha… foi um super musical, fiz dois personagens, o corvo e o burro. Era muito legal, ficamos um tempão em cartaz. Quando chegou perto do final da temporada, começaram a organizar outra peça. E decidiram que iriam fazer O Despertar da Primavera. Não tinha papel para mim… Na época, eu era bastante temperamental, fiquei revoltadíssimo, me senti excluído.

Mas aí, olha o que aconteceu em uma das sessões… apareceu um grupo de três ou quatro pessoas para assistir ao musical, e quando acabou a peça, me chamaram para conversar. Era um grupo novo, de amadores, que queriam montar um espetáculo, e estavam à procura de artistas… Nem quis saber o que era, e respondi: ‘Vou, faço’. Aí perguntaram: ‘Mas você não quer dar uma olhada antes?’ e eu falei: ‘Não, eu já sei. Podem me chamar, que eu vou’.” … era o Grupo TAPA.”

O ator em Ilustre Molière (Foto: Acervo Pessoal / Divulgação)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

O Grupo TAPA
“Aí eu comecei a trabalhar no TAPA, de onde nunca mais saí. Hoje em dia eu acho que foi uma coisa do céu… As coisas sempre chegaram para mim! Por isso digo sempre que não sou exemplo para ninguém. Se estou aqui hoje, fazendo o que faço, é porque eu sou um predestinado. Hoje só agradeço, porque me dou conta das vantagens que tive, mesmo sendo um cara pobre, preto, em uma sociedade racista, em que até hoje é complicado viver, principalmente de arte. E o TAPA me acolheu como um de seus integrantes. Fiz muitas coisas fora do TAPA, mesmo estando lá, o Eduardo [Tolentino] nunca foi centralizador. Passamos poucas e boas no TAPA também, tantas histórias, de lágrimas a risos. A gente nem sabia se aquilo iria adiante, era um dia de cada vez. Não tínhamos planos, o Eduardo talvez até tivesse na cabeça dele, mas não falava para ninguém. Mas eu sempre confiei muito naquilo. A minha intuição dizia que aquilo não iria acabar ali, que ia longe…

Quando você está fadado a um determinado destino, a uma determinada situação, você não precisa fazer nada, você só precisa deixar as coisas acontecerem. Claro, você tem que se colocar em movimento, fazendo coisas para propiciar ao universo trazer as coisas que são para você.

Aí eu comecei a mudar de atitude, diante disso. Comecei a ficar menos irresponsável. Considero que foi meu rito de passagem para a vida adulta. Depois viemos para São Paulo, eu, Eduardo, Brian [Penido Ross], Clara [Carvalho], Denise [Weinberg], Maria Emilia [Rey]. Vim com uma mão na frente, outra atrás. Quando viemos para cá, nós não tínhamos referência nenhuma, nós tivemos que construir tudo do início. E ainda estamos em construção…

Fazíamos tudo juntos: morávamos juntos, ensaiávamos e apresentávamos as peças. O tempo inteiro falando de teatro. Então, fui procurar cursos que não tivessem nada a ver com aquilo, porque não aguentava mais falar só de teatro.  Então entrei em um curso de Ikebana, arranjos florais japoneses. Só tinha eu de homem e várias senhoras, que se tornaram minhas amicíssimas.”

Esoterismo
“De lá, fui fazer outros cursos e acabei mergulhando no esoterismo, nas ciências alternativas, e até hoje estou com isso até o pescoço… Foi o que me salvou. Dediquei a outra metade da minha vida a isso, o que me trouxe paz de espírito, consciência espiritual, uma porção de coisas. Descobri o budismo, até que encontrei o xintoísmo, que é o que eu abraço hoje.

Acabei descobrindo que tudo isso e teatro é a mesma coisa! Não que eu vá fazer trabalhos holísticos no teatro, e vice-versa, mas é uma questão espiritual mesmo! De você se colocar, verdadeiramente, a serviço de uma fé. O trabalho e o resultado são diferentes, mas a prática e o envolvimento são os mesmos. Hoje tenho um centro, um eixo, isso foi uma conquista.”

Preconceito
“Já me perguntaram sobre isso e me cobram uma postura nesse sentido, por eu ser um ator negro. Isso me deixa muito cansado. A primeira coisa que as pessoas enxergam é um ator negro, não o meu trabalho. Mas a minha militância – pode até parecer um discurso ensaiado, mas é real, e levo muito a sério – é no palco. Já passei poucas e boas, por situações muito delicadas, mas eu sempre tentei olhar por outro lado. Tentei tocar minha vida para a frente, não me deixei abalar – isso eu aprendi com o meu pai. No teatro, em As Raposas do Café, eu pude fazer o papel de Lima Barreto, escritor negro que foi muito perseguido, vilipendiado. Também fiz Machado de Assis, que sofreu um processo de embranquecimento de suas imagens e que hoje sua negritude está sendo resgatada. Depois, veio Os Órfãos de Jânio, no TAPA, em que eu fazia o papel de Wilson Simonal.

Meu pai dizia: ‘Filho, você é preto. Você precisa ser o mais bem vestido de todos, o mais inteligente de todos, o mais culto, e mesmo assim as pessoas vão olhar com desconfiança para você’. Quando você vê um negro calado, você acha que ele é analfabeto, que não tem cultura, existe todo um estereótipo, um pré-conceito, de maneira que se atribui às pessoas os valores que você tem. E quando entramos no palco, nós somos julgados, imediatamente, pela nossa imagem. E essa imagem só vai ser transformada na medida em que nós falamos e agimos; pelo refinamento dos gestos, pelas palavras que escolhemos, pela rapidez do raciocínio. Aí a casca passa a não importar mais, porque você passa a enxergar além dela.”

Prêmios e reconhecimento
“É uma questão de atribuir justiça. Eu não quero para mim fama, projeção, nada disso. Eu quero que as pessoas sejam justas e que vejam exatamente o que eu tenho para oferecer – só isso. Não é reconhecimento, quero que elas saiam satisfeitas do teatro, sabendo que o dinheiro delas foi bem empregado e que estão em boas mãos. Isso me basta. Tudo que aconteceu na minha vida, em termos de reconhecimento, foi consequência de um trabalho que eu amo fazer. E que eu não fiz visando isso. Eu fiz, em primeiro lugar, para mim, porque eu me sinto bem, eu gosto, eu me realizo. O resto é o resto, prêmios, fama… Eu quero e tenho o reconhecimento dos meus pares e isso é muito importante para mim.

Eu ganhei três prêmios na minha vida, no teatro: o primeiro foi com Senhor de Porqueiral, o segundo, com A Mandrágora, de Maquiavel, e, por fim, com L’Ilustre Molière, em que eu fazia o próprio Molière. E, nos três, eu pintava o rosto de branco. Os três prêmios que eu ganhei, não foram com o meu rosto à mostra. Eu tinha uma maquiagem pesada, uma máscara. Este é o fato. Eu não sei o que isso quer dizer, vou deixar a conclusão para você… por que será? Foram dois APCAs e um Prêmio Shell. Eu já tive umas sete indicações a prêmio, não foram só essas, e, sistematicamente, perdi.”

O que sente ao olhar para sua trajetória?
“Há uma semana, dando aula com a Clara [Carvalho], no grupo de estudos do TAPA, sobre Molière, surgiu, em um dos textos, a expressão ‘chapeau bas’. Eu perguntei o que aquilo significava e a Clara disse: ‘Você não sabe o que significa? Você era o primeiro que deveria saber!’. É uma expressão idiomática francesa que significa ‘tirar o chapéu’, em razão da competência de alguém; como uma reverência.

Quando o Grotowski [diretor de teatro polonês e figura central no teatro do século XX] esteve aqui em São Paulo, dando um curso para grupos de teatro de que o TAPA participou, eu fiz uma cena para ele, de A Megera Domada, o monólogo do criado. Comecei a fazer a cena e ele tirou o cachimbo da boca e ficou na pontinha da cadeira, prestando atenção. Quando foi fazer a avaliação final, para falar o que ele tinha achado do nosso trabalho, disse – sobre mim: ‘para esse ator eu tiro o chapéu [chapeau bas]’.

O Grotowski, que é uma figura lendária do teatro mundial, tirou o chapéu para a minha atuação! Mas eu não tinha registrado isso… Imagina, ele com quase noventa anos, se impressionar com um ator brasileiro, e usar essa expressão. Isso não é pouca coisa.

A questão é que não importa o talento, eu tenho que fazer bem o meu trabalho, para que ele chegue de uma maneira cristalina para as pessoas. Eu preciso dar o meu sangue, o meu suor e minhas lágrimas para isso, porque é nisso que eu acredito.”

 

Este texto foi, originalmente, publicado no site da revista Vogue Brasil, dentro do segmento ‘Gente’. Para acessar a publicação original, clique aqui.

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Sobre
Natália Beukers

Natália Beukers

Atriz e criadora do Portal Infoteatro, formou-se em Direito pela PUC-SP (2020). Começou a estudar teatro aos 10 anos, formando-se como atriz em 2017. Entre 2017 e 2021, estudou com os atores do Grupo TAPA, participando de três espetáculos: “Anatol”, “O Jardim das Cerejeiras” e “Um Chá das Cinco”, além de ter sido assistente de produção em mais de 10 temporadas da companhia. Professora de teatro desde 2022, atualmente cursa licenciatura no Célia Helena Centro de Artes e Educação. Embaixadora do Teatro B32, também já colaborou com a Folha de S. Paulo e com o segmento 'Vogue Gente', da Vogue Brasil, entre 2021 a 2023, onde publicou mais de 50 textos sobre teatro. Desde a criação do Infoteatro, em abril de 2020, entrevistou mais de 100 profissionais da área teatral.

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