O grande ator e diretor de teatro Elias Andreato me contou que, no início de sua carreira, escreveu o Manifesto do Contrarregra, originado de entrevista com o então contrarregra, o próprio jovem Elias, para fazer a divulgação de uma peça, oportunidade em que pôde expor como era ocupar aquela função.
A partir dessa história, e saudosa pela distância que todos estamos do teatro presencial neste momento, comecei a me lembrar dos meus dias de contrarregragem.
Nos três anos que antecederam a pandemia, fiz parte, também como contrarregra, de várias montagens produzidas pelo Grupo Tapa. Foram anos de intenso aprendizado. Quero acentuar como exercer a função de contrarregra me proporcionou ensinamentos valiosos sobre a arte que se pratica no teatro e o que a envolve. Também aproveito para matar a curiosidade daqueles que me perguntavam, à época, o que eu fazia exatamente.
Como contrarregra, era a primeira a chegar ao teatro. Ficava ansiosa o dia inteiro para aquele momento tão esperado. Passava pelo saguão vazio, bem diferente sem as pessoas, e descia, quase sempre às pressas, as escadas que davam acesso aos camarins – espaço lúdico para quem exerce o ofício de representar.
Totalmente no escuro, eu acendia as luzes redondas em volta dos espelhos. As lâmpadas amareladas iluminavam a bagunça que havia ficado do dia anterior e todo o trabalho que deveria ser feito naquele início de noite.
Mas, antes de outras tarefas, o café! Era preciso prepará-lo para quando a equipe chegasse. Sempre despejava o pó na cafeteira com receio de que os atores achassem o meu café muito forte ou fraco demais. Afinal, nada poderia atrapalhá-los para realizar seu trabalho.
Em seguida, dava uma organizada geral nos camarins e verificava se os figurinos estavam todos nas araras corretas.
Confesso que antes de continuar a arrumação, colocava por cima do corpo a maior parte dos figurinos. Experimentava os chapéus e segurava as bengalas para ali, sozinha, imitar algumas falas das respectivas personagens, como se, por sonho, fizesse parte do elenco. Mas esse momento de devaneio era fugaz, pois a camareira chegava e era preciso passar os figurinos, seguindo com os preparativos.
Curioso foi perceber que sempre o mesmo ator chegava primeiro ao teatro. Quando se é contrarregra, o melhor que se pode fazer é observar, observar tudo, inclusive conhecer o ritual de preparação dos atores para o espetáculo que se aproxima. Esse mesmo ator ascendia todas as noites um incenso diferente e aquele odor característico se tornou, para mim, o cheiro de teatro.
Depois da camareira e do primeiro ator, chegavam sempre o produtor, responsável por fazer tudo aquilo existir, e, logo em seguida, o diretor, que se equipara ao maestro da orquestra. Com a equipe toda chegando, o entusiasmo ia começando a tomar conta daquele espaço. Todos os dias antes de começar o espetáculo, o teatro era tomado por uma alegria inconfundível e tudo ganhava uma tal energia que não há como descrever.
Eu, a contrarregra, tentava não parar de andar de um lado para o outro, ficando à disposição do que fosse necessário. Já tive de sair pelas lojas do bairro à procura de algum objeto de cena, ou me virar para pregar um botão de última hora. Preciso confessar: não foram tão raras as vezes em que escolhia realizar alguma tarefa num determinado camarim ou espaço do palco, a depender do meu interesse pelo papo que estava rolando.
Deixando o romantismo um pouco de lado, percebia que o tempo estava correndo e era preciso continuar com as minhas obrigações. A função primária do contrarregra é, basicamente, organizar todos os objetos de cena e do próprio cenário para que tudo fique exatamente como deve estar no início da peça. Imagine um simples cinzeiro fora de lugar… Ou a falta da taça que o personagem deveria entornar. Há, também, espetáculos em que o contrarregra organiza as coxias e objetos de cena durante a apresentação, o que faz crescer a sua responsabilidade. E, quando tem sorte, consegue até entrar no palco para fazer alguma troca de cenário com “um quê” de atuação!
Voltando ao início do espetáculo, via o tempo passando e já começava a ouvir um pequeno burburinho na entrada e no saguão do teatro. Ficava curiosa e, então, subia as escadas correndo para ver quem veio nos assistir naquela noite e quantos ingressos teriam sido vendidos até então.
Aproveitava para continuar correndo de um lado para o outro, sentindo-me importante por imaginar que as pessoas estivessem percebendo que eu fazia parte da equipe que estava “trabalhando na peça”.
Ao voltar para os camarins, os atores já estavam se aquecendo e alguns me perguntavam se naquela noite teríamos bom público – uma de minhas funções era avisar o elenco como estava a casa naquela noite. E que satisfação era informar: estamos com a casa cheia!
O primeiro sinal tocava, e eu me sentava cansada na coxia, depois de tudo que havia feito e me continha apenas em observar a arte acontecendo de bem perto, como uma espectadora privilegiada. Observava os atores em cena, os atores que estavam nas coxias aguardando para ingressar no palco, a recepção da plateia, suas reações, os atores se preparando nos camarins entre uma cena e outra, um emaranhado de sentimentos entre aflição e glória.
Enfim, sendo contrarregra, além de tudo, se aprende as “regras do jogo”. Aprendi que o trabalho a mim confiado fazia parte daquela engrenagem. Aprendi que o teatro é coletivo e que todas as funções são essenciais para que a plateia assista a um determinado resultado, um espetáculo perfeito, merecedor da audiência.
A peça se encaminhava para as últimas cenas. Após os aplausos, os atores saíam muito elétricos do palco. Quase sempre falando mais alto do que quando chegaram. Eles começavam a se despir dos figurinos para ir embora, e quase sempre discutiam o que havia sido bom ou ruim naquela apresentação…
Todos iam embora dos camarins e eu era, quase sempre, a última a sair. Naquele momento, olhava para o palco vazio depois do espetáculo ter acontecido. É muito curioso, pois aquele espaço ainda parecia enfeitiçado; fica diferente após a representação dos atores. Era possível perceber que algo de importante acontecera ali.
Ao fim de tudo, eu me detinha por um minuto para avaliar o trabalho que teria no dia seguinte. E, antes de apagar o último conjunto de luzes redondas amareladas, olhava para o meu reflexo no espelho e pensava: “que sorte eu tenho de estar aqui”.
(Este texto foi inspirado nas minhas experiências como contrarregra do Grupo Tapa. O teatro, na maioria das vezes, era o Aliança Francesa, na Rua General Jardim, Centro de São Paulo. Gostaria de agradecer a todos que me deram a oportunidade de ocupar essa função, aos quais dedico este texto, em especial ao diretor Eduardo Tolentino de Araujo e ao produtor e ator Ariel Cannal, sem esquecer do mote que me foi concedido por Elias Andreato).
Este texto foi, originalmente, publicado no site da revista Vogue Brasil, dentro do segmento ‘Gente’. Para acessar a publicação original, clique aqui.