È um desafio repropor em cena um texto escrito há trinta e sete anos. O desafio torna-se ainda maior pelo fato de ter sido este o texto de estreia profissional do autor, Samir Yazbek.
O protagonista é um ator de sucesso que revisita sua pequena cidade natal depois de décadas de ausência. Sonhos recorrrentes com o passado o haviam levado a intuir que sua mãe e irmãos o procuravam e desejavam ardentemente reencontrá-lo.
Antes do embarque, no aeroporto, transitando entre fãs que o reconhecem e para quem ele acena, eis que lhe vêm à memória as palavras de sua mãe, certa vez, quando lhe perguntaram qual era seu filho predileto: ”o doente até que sare, o pequeno até que cresça, e o ausente até que volte”.
Disposto a reencontrar a família, o protagonista, que tinha partido para longe depois da morte do pai, provavelmente imagina que sua volta fará dele esse filho predileto mencionado. O que o aguarda em sua chegada, porém, é um cenário de desolação: os familiares já não vivem, e da casa em que passou sua infância restam apenas escombros vagamente reconhecíveis.
Uma grande ironia perpassa seu fluxo de consciência verbalizado em cena: é ele próprio agora, diante do vazio, o sujeito da procura.Tudo o que lhe resta é procurar a si próprio dentro desses restos do passado, e tentar recompor os fios fraturados das reminiscências esparsas.
Nem tudo é impalpável nesse cenário devastado: lá está, surpreendentemente ainda viva, a jabuti com que ele brincava em sua infância, lá está o marionete que o faz lembrar do circo e a garrafa de vinho escondida na fresta do que ainda resta do muro. Mas lá está, também, a voz incorpórea que o questiona, e que o leva, talvez, a dirigir-se imaginariamente a Raeta, pessoa, entidade ou personagem que o deixa sem resposta, tal como a jabuti, que se retraiu em silêncio em sua carapaça. E lá está, insistemente, o inseto perturbador cujo vôo e zumbido invasivos o intimidam, sugerindo um aguilhão do qual ele não tem como se defender ou escapar.
A direção de Gustavo Merighi, o cenário de Camila Arruda, e o figurino de Úga agÚ deram à peça de Samir uma sintaxe cênica instigante, inspirada livremetne no imaginário cyberpunk, com associações imagèticas distópicas reforçadas por monitores de TV que transmitem fragmentos da imagem do protagonista, e pela concepção de luz de Fran Barros.
Ressalte-se ainda a intensidade do efeito cênico do inseto que persegue o protagonista, corporificado num drone que esvoaça o palco com a operação de Kau Stegeman. O desenho sonoro a cargo de Ivan Garro tem papel decisivo por agregar força sugestiva ao conteúdo das cenas, ora reforçando o mundo pop a que se liga o protagonista e do qual extrai sua popularidade, ora estabelecendo um nexo rememorativo imprescindivel ao sentido interpretativo.
Anderson Miller entrega-se vigorosamente ao papel, e brilha em cena ao executar um verdadeiro tour de force interpretativo, que sem dúvida representará um marco em sua carreira.
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