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Foto: Nadja Kouchi
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“Os Vencedores” extrai graça da tragédia dos pobres que se escravizam em nome de uma imagem ilusória

A parceria do dramaturgo Leonardo Cortez e do diretor Pedro Granato mantém o fôlego no fim da trilogia que enfatiza crítica à luta de classes

Crítica Por Dirceu Alves Jr.

O Juiz de Paz na Roça, de Martins Pena (1815-1848), é considerado o marco inicial da comédia de costumes brasileira em 1838. A peça enfoca uma família interiorana envolvida com um magistrado disposto a tirar proveito da ingenuidade dos personagens em situações inusitadas.  

Quase dois séculos depois, a fórmula que contrasta poderosos e oprimidos continua sendo a principal matéria-prima para levar plateias ao riso e, se possível, promover oportunas reflexões. Com o avanço das liberdades criativas, porém, os teores comportamentais, políticos e sociais foram refinados para aprimorar as narrativas. 

Nos anos de 1960, Toda Donzela Tem um Pai que é uma Fera, de Gláucio Gill (1932-1965), desmascarava a hipocrisia em torno da virgindade e da autoridade paterna e, entre as décadas de 1980 e 2000, o dramaturgo Juca de Oliveira lotava teatros com sátiras políticas. Meno Male (1987), Caixa 2 (1997) e Às Favas com os Escrúpulos (2007), entre outras, denunciavam a corrupção através de personagens beneficiados pelas conveniências da vida pública. 

Foto: Nadja Kouchi

Na mesma fase, Marcos Caruso e Jandira Martini (1945-2024) escreveram exemplares do gênero, como Sua Excelência, O Candidato (1986), sobre um aspirante a político em busca de uma saída para a falência pessoal.

Os tempos são outros e, nestas primeiras décadas do século 21, é sabido que os vilões assumem diferentes identidades e estão por todos os lugares, muitas vezes sem usar colarinho branco ou representados de formas abstratas. O dramaturgo paulistano Leonardo Cortez, de 50 anos, entendeu este caminho há algum tempo. Mesmo inspirado pelos antecessores, ele investe em crônicas sociais que revelam desvios de conduta e retratam a leviandade, inclusive, de quem povoa o lado mais frágil da sociedade.

Em Maldito Benefício (2014), o protagonista é um taxista que almeja usufruir de um dinheiro que o seu velho pai deve receber em um ano, enquanto em Sala dos Professores (2016) são visíveis os contrates éticos entre os servidores de uma escola pública. A partir de 2019, algo ficou explícito na mentalidade do brasileiro e, como um atento observador, Cortez percebeu que seus personagens habitavam a sua própria bolha.

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Dispensando estereótipos, o autor atingiu o auge com a Trilogia da Fuga, formada por Pousada Refúgio (2019), Veraneio (2023) e Os Vencedores, em cartaz no Teatro do Sesc Ipiranga, que encerra o projeto coordenado pela direção conectada de Pedro Granato. Em uma parceria afinadíssima, Cortez encontrou em Granato a visão capaz de colocar as suas palavras no palco rodeada de ícones que revelam uma nova identidade do povo brasileiro, muitas vezes difícil de ser admitida pelos artistas.

Pousada Refúgio representa o desconforto dos emergentes diante do cotidiano opressor que sustenta um suposto conforto. Na peça, um grupo de amigos sonha com a mudança para um lugar bucólico e desconectado, mesmo que, no fundo, não tenha condições de viabilizar o projeto. Mais cômica, Veraneio enfoca uma setentona que se isolou na praia durante a pandemia e descobriu uma vida prazerosa longe da família. O reencontro com os três filhos fracassados desmascara o incômodo deles ao enxergar na mãe uma energia que perderam há muito tempo. 

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Os Vencedores, o encerramento da trilogia, explora outros caminhos, menos digestivos e mais complexos por cutucar feridas que a classe média reluta enxergar. O primeiro deles é que os personagens, embora possam imaginar isto, não pertencem a uma “classe média”, e, se Pousada Refúgio e Veraneio, giravam em torno de desconexões com a realidade, desta vez, é a luta de classes quem define a narrativa e coloca os personagens mais próximo da vilania que do bom mocismo.

Tudo o que Maria Rita (interpretada por Lena Roque) desejava era jantar em paz com o marido, Chico (papel de Leonardo Cortez), para brindar os 20 anos de casamento. Cozinhou um canelone, gelou um espumante presenteado pelo chefe dele há três anos e acreditou que o filho, Bernardo (representado por Gabriel Santana), um esportista deprimido, passaria a noite trancado no quarto. 

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O sossego balança quando bate na porta Rivânia (a atriz Glaucia Libertini), a prima intrometida que aparece com a desculpa de levar um bolo e abraçar os aniversariantes. A casa cai de vez com a chegada de Chico, acompanhado do patrão, Luís Otávio (vivido por Luciano Chirolli), bêbado e furioso com uma traição conjugal. Não demora para o ricaço roubar o foco e soterrar a idealização romântica de Maria Rita. “Esquece o jantar, Maria Rita! O Doutor Luís Otávio está aqui, então eu continuo dando expediente”, avisa Chico, o motorista fiel. 

Com o caos instaurado, todos, menos o resignado Chico, começam a reverter as frustrações em nome dos próprios interesses em um jogo que gradativamente fica perigoso. A submissão do funcionário, talvez um excesso de caráter, contrasta com a postura interesseira de Rivânia e a indignação de Maria Rita.

O ponto de virada é a entrada em cena de Bernardo. Especialista em arco-e-flecha, o filho do casal não tem recursos para disputar um campeonato no Azerbaijão e sofre com a saudade da irmã gêmea, Juliana, que, igualmente infeliz, estuda nos Estados Unidos. Espécie de salto narrativo quase realista para uma comicidade nonsense, o garoto é o reflexo das escolhas erradas de um casal que julga fazer o melhor para os filhos, mas os enterra em frustrações – e, neste ponto, Os Vencedores se aproxima fortemente de Pousada Refúgio e Veraneio. Só que, nesta peça anterior, a matriarca acordou a tempo de se salvar. 

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Os dois primeiros espetáculos eram sustentados basicamente pelo menos elenco. No primeiro, Cortez e Glaucia contracenavam com Maurício de Barros, Tatiana Thomé e Daniel Dottori. Com exceção de Dottori, todos estavam em Veraneio, desta vez acompanhados de Clarisse Abujamra e Sílvio Restiffe. 

Esta intimidade era visível tanto na exploração dos tempos cômicos como nas viradas de pegada mais tragicômicas que pautavam as duas montagens. Em Os Vencedores, apenas Cortez e Glaucia ficaram da turma original e, se a própria dramaturgia é mais acelerada, é deste desconforto diante de colegas menos alinhados que se faz a graça do espetáculo.  

Os Vencedores é o tipo de história que o espectador acompanha com a certeza de que um grande problema pode estourar a qualquer momento, sob o ponto de vista ficcional e, para os mais conectados, de bastidores. A presença de Luciano Chirolli, ator instintivo e adepto da experimentação, gera uma saudável apreensão no elenco, semelhante àquela causada por seu personagem. Dono da própria cena, Chirolli desestabiliza a comédia e, semeando a dúvida diante da plateia se é fiel ao texto ou improvisa, insere o espectador na desarmonia dominante adaptada ao jogo.

Cortez e Glaucia dão vida aos seus personagens com a mesma eficiência, apoiados no conhecimento prévio de um estilo dramatúrgico consolidado. Esta é a mesma trilha seguida por Lena Roque, responsável pela personagem com mais oscilações psicológicas, o que propicia à atriz uma crescente evolução do desenho emocional de Maria Rita. 

Mais flutuante e próximo à proposta de Chirolli aparece Gabriel Santana, talvez até por ser o menos experiente do grupo, surpreendente por uma liberdade em cena que é fundamental para a desestruturação familiar na reta final da peça. Com seu arco e flecha, o personagem provoca a solução trágica dentro da comédia, algo que se ficasse nas mãos de Luís Otávio, por exemplo, seria pouco impactante, mas com Bernardo atinge outras camadas de leitura.  

Como um gênero tradicional e disposto a envolver o maior número de espectadores possível nada pode resultar mais careta que uma comédia se o texto cair em mãos conservadoras. É neste quesito que a presença de Pedro Granato, com seu olhar atento à contemporaneidade, faz a diferença na dramaturgia de Cortez. Granato ressalta um caos presente o tempo inteiro nos diálogos e estimula os atores e atrizes a jogá-los em cenas de um jeito tempestuoso que costuma ser destoada apenas por um dos integrantes do elenco. 

Neste caso é o Chico de Cortez, que representa a sensatez ausente de todos os outros, assim como em Veraneio era a Laura de Clarisse Abujamra quem simbolizava o equilíbrio ignorado por seus familiares e até pelo namorado (papel de Maurício de Barros). Diante destas sutilezas, o que poderiam parecer excessos, como a trilha sonora quase sempre contemporânea e popular, faz parte de um entendimento sobre o que representa a comunicabilidade com o público nesta década de 2020. 

Ao provocar estes exageros, Granato cria uma linguagem que leva as obras de Cortez à cena sob um conceito facilmente identificável com o comportamento de uma classe baixa que se acha pertencentes aos medianos e de uma classe média que se considera endinheirada. 

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Os Vencedores é uma comédia para rir e pode não ser tão engraçada ou popular como Veraneio ou reflexiva a exemplo de Pousada Refúgio, mas conta com todos os princípios capazes de garantir a diversão da plateia com uma agilidade fundamental ao gênero.

Se os vilões de Juca de Oliveira, por exemplo, eram os políticos corruptos, quem impulsiona o mal nos textos de Cortez é o próprio capitalismo. O sistema vende ideias ilusórias e transforma a existência de pessoas que se escravizam até espontaneamente para transmitir uma imagem diferenciada que elas não têm, a de vencedores.

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Dirceu Alves Jr.

Dirceu Alves Jr.

É jornalista, escritor e crítico de teatro, trabalhou em Zero Hora, IstoÉ Gente e Veja São Paulo e publicou os livros Elias Andreato, A Máscara do Improvável (Humana Letra) e Sérgio Mamberti, Senhor do Meu Tempo (Edições Sesc).

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