A empreitada de um festival de teatro com este porte no Rio de Janeiro foi tão inusitada que nem o Google estava pronto. Quando comecei minha pesquisa para este artigo, só esbarrava em informações sobre o festival de cinema — que ocorreu concomitante e ironicamente na esquina de seu colega teatral. Precisei refinar a busca, esperando que o acesso à informação para o público geral tenha sido mais fácil do que foi para mim. Em contrapartida, não há o que se falar da divulgação física: pontos de ônibus, bancas de jornal e MUPIs rotativos por toda a cidade estampavam os vários artistas da programação, em sua maioria rostos “globais”, familiares a todo brasileiro — ou, melhor dizendo, a todo carioca.
A estratégia era clara: dos doze espetáculos no palco principal, nove contavam com estrelas da Rede Globo no elenco. Não que seja demérito ver Renata Sorrah, Othon Bastos ou Vera Holtz em cena; o talento é indiscutível, muitas vezes até minado pela rotina fordista de um set de gravação. A questão é o status social que esse set impôs aos seus nomes e como isso se tornou a principal ferramenta de venda do evento. A realizadora, Instituto Evoé, que não é boba nem nada, agiu da forma mais empreendedora possível para vender o festival à base dos nomes em sua programação. Mas é uma observação, não uma acusação. Seria errado? Longe disso.
Maria Siman, curadora e diretora de produção do festival, explicou a lógica por trás dessa vitrine e a linha de pensamento que levou à seleção. “Eu brinquei inicialmente que ia ser um festival de grandes sucessos”, contou. O objetivo era levar ao palco do Teatro Riachuelo, com seus mil lugares, produções que já haviam “impactado a cena pela sua inventividade, seu conteúdo” e, crucialmente, “que trouxeram multidões aos teatros”. A fama do elenco, admite, é uma consequência dessa busca por grande público. “Em geral, esses espetáculos com pessoas famosas levam muito público”, afirma, mas ressalta que o filtro curatorial barrou produções que, mesmo populares, não ornavam com a proposta.
A combinação da curadoria artística com a comercial rendeu frutos muito doces: antes do festival sequer começar, boa parte das peças já estava muito bem vendida. Mas o que ninguém esperava, no entanto, era que a maior surpresa do festival viria justamente dos espetáculos que corriam por fora dessa lógica. Como a própria curadora confirmou em nossa conversa, o primeiro espetáculo a ter seus ingressos completamente esgotados — incluindo os lugares reservados para PCDs — da plataforma de vendas não foi o de uma estrela do horário nobre, mas sim “Macacos”, uma peça com a temática antirracista.
Aqui, a tese curatorial sobre “grandes sucessos” se confirma, mas por um caminho distinto. “Macacos” e o fenômeno “King Kong Fran” não chegaram ao festival com o peso de nomes televisivos. São, para usar uma analogia a seus títulos, dois animais raros: espetáculos que se valem de sua própria trajetória, construída sobre os ombros de suas estrelas — Clayton Nascimento e Rafaela Azevedo —, que se tornaram estrelas por causa destes trabalhos. O sucesso de “Macacos” e “King Kong Fran” prova que, mesmo em um projeto edificado sobre a irônica popularidade teatral capitalizada pela televisão, no fim das contas, ainda é sobre a identificação do público com a mensagem mais do que com o mensageiro.
Quando questionado sobre esse processo, Clayton Nascimento, que narrou em uma das ações formativas do Palco 360° sobre o desdém recebido de colegas e professores sobre o material que viria a ser hoje esse estrondoso sucesso, sua resposta foi uma mistura de humildade e a mais pura perseverança. “Parafraseando a Fernanda Torres, eu me sinto o Pikachu”, ele brinca, e completa: “A mim, me cabe dormir bem, comer bem, beber água, acordar e fazer minha peça. Porque é o público que está respondendo a esse desejo”. Quando perguntado sobre a trajetória de salas vazias a casas cheias no festival, ele ressalta que adora quando é assim porque “a gente vê que os caminhos não são retilíneos”.
Essa mesma sensação de um caminho construído na base da cumplicidade com a plateia é compartilhada por Rafaela Azevedo. Ela descreve o crescimento de “King Kong Fran” como uma convocação nascida da urgência. “Eu sinto que quando eu convoquei para ‘King Kong Fran’, fui ganhando o público […] esse boca a boca que foi crescendo”, explica. “É um pouco do público, né? Que você sente na sua dramaturgia, quando o público está ali junto com você e vocês começam quase a se espelhar. Eu preciso me comunicar com essas pessoas, porque eu não tenho nada além disso. Então é uma escuta muito sincera que vai fazendo crescer.”.
Contudo, as surpresas da programação não estavam reservadas apenas a estes espetáculos: o restante do evento mostrou que a equação “ator famoso + peça de sucesso” estava longe de ser uma ciência exata. “Ficções”, estrelado pela gigante Vera Holtz, amargou a maior vacância do festival, sendo a única produção que, até o fechamento deste artigo, ainda dispunha de ingressos populares. Talvez uma terça-feira tenha sido um dia ingrato na programação, mas o fato contrasta brutalmente com “O Céu da Língua”, de Gregório Duvivier, que se tornou o campeão de vendas, esgotando quase todas as suas oito sessões — e ainda ganhando mais uma sessão —, mesmo com apresentações em uma segunda-feira.
Talvez o verdadeiro teste para o sucesso do festival veio de um imprevisto: um acidente no palco durante uma apresentação de Claudia Raia forçou o cancelamento de “Cenas da Menopausa”, que teria sua estreia carioca no evento. Para cobrir a ausência da peça de Claudia Raia, foram incluídas mais duas datas de “Macacos” e uma de “Simplesmente Eu, Clarice Lispector”, com Beth Goulart, que não estava incluso na programação original. No entanto, a rápida movimentação da produção foi uma faca de dois gumes: enquanto eles não deixaram um buraco na grade do evento, a falta de divulgação para datas tão iminentes refletiu na baixíssima vendagem da peça de Beth Goulart, enquanto as novas datas da peça de Clayton Nascimento – apesar de boa procura – estavam longe de esgotar como sua data original. Afinal, o sucesso da bilheteria não é um raio que cai duas vezes no mesmo lugar. Ele depende de previsibilidade e investimento.
Longe dos holofotes do palco principal, o festival ocupou o Teatro Adolpho Bloch com o projeto Palco 360°, uma vertente de ações formativas, painéis e debates, com acesso gratuito. Ali, a agenda focou no processo criativo e no mercado teatral. Um painel discutiu a construção do sucesso de longa data, outro focou no futuro da cena em um papo com produtores e artistas, e a resistência das companhias de teatro. Um curso de imersão na obra de Nelson Rodrigues completou a programação.
Nas palavras de Aniela Jordan, diretora artística da Aventura, a iniciativa reafirma o “compromisso do evento com o debate” e a “formação de plateia para as próximas gerações”. Foi um reconhecimento importante de que um festival não se sustenta apenas com bilheteria: enquanto um palco capitalizava sobre o sucesso comercial consolidado, o outro se dedicava a discutir a origem desse sucesso e a fomentar as bases para o futuro do teatro.
Comercialmente bem sucedido, o I Festival de Teatro do Rio de Janeiro parece ter funcionado, mas nem tudo é sobre dinheiro. Se os moldes do festival se mantiverem, ser convidado para integrar a programação do Festival de Teatro do Rio de Janeiro se tornará um indicativo do sucesso profissional de um artista teatral. Mas é muito cedo para prever o desenrolar dessa ambição e até seria prudente que esse Ícaro não voasse tão alto, pois se tem uma coisa que não falta no Rio de Janeiro é Sol: a primeira edição parece ter fluído bem, mas a constante quebra de expectativas da organização precisa ser um lembrete de que tudo está longe de ser impecável. E também, fica a lição para 2026: o frenesi não veio das estrelas já consagradas pela TV, mas de trabalhos que se fizeram gigantes por conta própria.
*Foto: Mariana Ricci (espetáculo Macacos, com Clayton Nascimento)
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