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A bebedeira de “Um Porre de Shakespeare” é tão boa que não deixa ressaca

Coluna Por Leonardo Simões

O público já está acomodado no teatro quando o ator avisa: “um integrante do elenco será sorteado e deverá beber quatro doses de cachaça antes da peça começar”. “Um porre de Shakespeare”, em cartaz no Núcleo Experimental, em São Paulo, usa essa introdução como aditivo da encenação de “Macbeth”, de William Shakespeare. Aliás, uma enorme foto do dramaturgo inglês está posicionada ao centro do palco, disposta acima de dois tronos. Os artistas reverenciam o autor; e ele, através de um tipo invisível – e ancestral – de permissão, nos alcooliza. 

Dirigido por Zé Henrique de Paula, o espetáculo é a versão brasileira de uma montagem que fez grande sucesso em Chicago e Nova York, nos Estados Unidos. E a adaptação do diretor injeta muita originalidade na trama com suas intervenções. 

Bancar a ruptura de um clássico, ainda mais de um texto pesado como “Macbeth”, usurpando a tragédia para esgarçar sua ironia e sarcasmo, é tarefa complicada. Sem um elenco comprometido com a proposta, capaz de achar esses elementos nas frestas da história para daí trazê-las à cena com frescor, o espetáculo poderia ruir. Mas Fabiana Tolentino (a bêbada da minha sessão), Luciana Ramanzini, Cleomácio Inácio, Dennis Pinheiro, Gabriel Lodi, Bruna Guerin e Rodrigo Caetano, se divertem muito com a roleta-russa teatral. A concentração de Tolentino, inclusive, pareceu imune às sete doses consumidas durante o espetáculo. A química dela com Luciana Ramanzini – um destaque na pele do general do exército do rei Duncan – e a calorosa interpretação de Cleomácio Inácio como Lady Macbeth, impuseram uma voltagem mais potente ao espetáculo. Como o artista sorteado ganha folga no dia seguinte, o elenco muda de personagem todas as noites, reforçando até a metalinguagem. 

Foto: Adriano Doria

Se em alguns momentos o desmonte da tragédia para erguer um tipo de farsa parece frágil, salpicando piadas em momentos de pura tensão, beleza ou horror, como no monólogo de Gabriel Lordi interpretando o rei Duncan, o saldo final é muito bom justamente pela transgressão do que é visto em cena, virando do avesso a percepção da plateia, e empurrando o elenco para um estado mais prazeroso do que qualquer bebedeira. A cenografia, também de Zé Henrique de Paula, e a iluminação de Fran Barros, convertem o teatro em um bar, mas sem destituir a força do palco. O que acontece diante dos nossos olhos pode estar sendo engraçado, mas esta é a armadilha do teatro. 

Bebendo em cena ou não, a coragem de “Um porre de Shakespeare” está em abrir as veias de valores universais, como o poder, a hierarquia e a ambição para mostrar o quanto eles podem ser ridículos. Fazer graça com esses andaimes que sustentam o mundo desde quando Shakespeare escreveu “Macbeth” é um jeito, inclusive, de entender as estruturas da contemporaneidade onde palhaços tornam-se reis e muitos homens poderosos parecem governar bêbados. Sobretudo, há uma chacota nessa encenação que tem muito a dizer sobre o nosso estado letárgico: ver um militar se tornar rei – independente do tempo, da era ou do país – sempre será uma piada. Quem vai rir? Eis a questão que atravessa os séculos. 

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Leonardo Simões

Leonardo Simões

Leonardo Simões é jornalista e redator. É mestrando em Educação, Arte e História da Cultura na Universidade Presbiteriana Mackenzie. Em 2023, publicou o livro "Folha de Rosto" (Mondru Editora).

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