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A Estranhíssima Experiência do Habitual

Coluna Por Chico Carvalho

Gostaria imensamente que vocês tivessem tido a mesma experiência minha ao ir ao teatro ontem aqui, em Buenos Aires. Porque a pancada é forte em todos os departamentos: artísticos, culturais, políticos, sociais, éticos, épicos, peripatéticos, apopléticos, energéticos e por aí vai. Porque a constatação óbvia é a de que o teatro nestas terras é algo que pertence ao hábito. As pessoas habitualmente vão ao teatro (terça-feira gelada e um teatro de 300 lugares lotados), o que portanto dá margem ao surgimento de uma figura estranhíssima: a do espectador-habitual, aquele que trata o teatro sem expectativas outras senão a de ir ao teatro, se sentar na plateia de um teatro e assistir a uma peça de teatro.

Silencioso, com atenção naquilo que está vendo e destituído de qualquer vontade de levantar uma bandeira e revelar aos horizontes: “Ei, vejam-me aqui! Que delícia é essa coisa de ir ao teatro, aplaudam-me!”. É alguém que simplesmente vai ao teatro porque o teatro está em seu cotidiano. Ir ao teatro é um programa cultural, mas sem elevar essa coisa de “cultural” acima daquilo que ela é: um movimento de hábito individual e coletivo que faz parte da vida comum de uma sociedade civilizada… Vocês não fazem ideia da maravilha que é ter a sensação física de que aquele público de teatro é de fato um público que foi ao teatro para ver teatro, e não uma colmeia de amigos do elenco que comparece para torcer pela luz talentosa dos correligionários.

A paróquia aqui é de outra dimensão… vira uma diocese, beirando uma congregação episcopal cuja homilia em pauta é a da inteligência, não a da amizade fraterna daqueles que se conhecem e se querem bem (amigues do ❤️). O alcance do negócio se torna público, o que deveria ser a vocação de qualquer coisa que se pretenda pública. Óbvio, não?

E os atores, então? Minha Santa Genovéva das Galharufas Extraviadas! Eis que temos diante de nós atores e atrizes igualmente habituais. No território da cultura como hábito não há razão para o desfile de atores extraordinários, para talentos múltiplos, performances avassaladoras, desempenhos fenomenais (não se reconhecem aí no uso desses adjetivos? Apanhem qualquer pseudo-crítica de algum espetáculo em cartaz na cidade de SP e percebam que a cada passo do ator em cena há um cortejo de querubins atrás jogando purpurinas no cocuruto do enviado de Dioníso)…

Sem força excessiva para nos convencer de que são geniais, sem releituras miraculosas para nos provar de que suas opiniões particulares valem mais que as vozes que emprestam para as personagens que representam, os atores que vi ontem simplesmente sobem ao palco para mais um dia habitual de trabalho. Se é hábito trabalhar não há razão para fazer do seu trabalho uma reprodução do jubileu de prata da Rainha Vitória da Inglaterra, não acham? Vocês não fazem a menor ideia da maravilha que é simplesmente ir ao teatro e enxergar atores a serviço de alguma coisa que definitivamente não é a evocação de algum espaço místico, sagrado, polvilhado de magias e o diabo a quatro…

Não se reconhecem aqui também? Que raios de atores somos nós que mal respiramos e já soltamos aos ventos o poder imantador do Evoé catártico em convergência com as forças das Bacantes em sinergia cósmica? Atire a primeira pedra aí quem nunca fez rodinha de olhinhos apertados antes das cortinas se abrirem para que as fúrias da Ilíada estivessem conosco no convescote potente da arte performática…

Dito tudo isto, só restam duas conclusões… As duas óbvias. A primeira é aquela ladainha maravilhosa de Hamlet: Diga-me que atores (e espectadores) tens e eu te direi a que mundo pertences.

A segunda é mais direta e recheada de poesia xamânica: ¡Más quy Mierda dy Teatro Nosotros Tenemos em Nuêstro País!

Nota: As informações e opiniões contidas neste artigo são de inteira responsabilidade de seu/sua autor(a), cujo texto não reflete, necessariamente, a opinião do INFOTEATRO.

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Chico Carvalho

Chico Carvalho

Ator, radialista e apresentador da Rádio Cultura FM de São Paulo. Formado em Artes Cênicas pela Unicamp e em Comunicação Social - Rádio e TV - pela Fundação Cásper Líbero. Mestre e doutor pelo Departamento de Artes da Unicamp.

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