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Foto: Flora Negri
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“A Máquina”, de João Falcão, volta renovada para mostrar que tudo o que o tempo nos oferece é bom demais

O paulistano Coletivo Ocutá assume a roda da vida girada por Gustavo Falcão, Lázaro Ramos, Vladimir Brichta e Wagner Moura há 25 anos com a mesma energia

Crítica Por Dirceu Alves Jr.

No final da década de 1990, o pernambucano João Falcão era o nome da vez entre os dramaturgos e diretores brasileiros. Andrea Beltrão e Marieta Severo lotavam teatros espelhadas no jogo de A Dona da História, e Marco Nanini fazia rir e chorar com o monólogo Uma Noite na Lua, na pele de um homem ávido por inspiração para escrever uma peça. Os dois textos abordavam tempo e memória, passado, presente e futuro, características que se tornariam marcas de Falcão. O autor, porém, nunca foi tão fundo quanto em A Máquina, adaptação do livro de Adriana Falcão lançada em 2000.

Cinco amigos gaúchos decidiram passar férias no Recife na última semana de fevereiro de 2000, entre eles este que vos escreve. Na chegada, um começo de tarde de domingo, fortes vestígios de um Carnaval, que, oficialmente, teria se encerrado na última quarta, derrubava a credibilidade do calendário com pessoas cheias de animação fervendo pela Avenida Boa Viagem.

Os dias se seguiram, todas as noites a cerveja era em um bar diferente, nos velhos sobrados do Recife Antigo, e um cartaz, entre tantos outros nas paredes, chamava a atenção nas caminhadas rumo ao balcão ou ao banheiro. Era a divulgação de uma peça recém-estreada, A Máquina, com um elenco desconhecido dirigido por Falcão, que poderia ser vista em um galpão do cais do porto. “Vamos?”, alguém falou e, acho, não fui eu. “Vamos!”, todos concordaram.

Foto: Flora Negri

Os jovens Gustavo Falcão, Lázaro Ramos, Vladimir Brichta e Wagner Moura eram os protagonistas, se revezando na pele de Antônio, um sujeito simples apaixonado pela sonhadora mocinha, vivida por Karina Falcão, homônima à personagem. Os quatro rapazes faziam girar uma roda cenográfica com os pés e as mãos, suavam litros e os diálogos poéticos estabeleciam com a plateia um jogo que, quem frequenta teatro sabe, não se vê toda hora.

Ainda em 2000, A Máquina fez temporadas no Rio de Janeiro e São Paulo e, um ano depois daquela semana no Recife, uma das amigas, a mais observadora até hoje, comentou entre alguns dos companheiros de viagem: “Vocês viram que um dos caras da Máquina está na novela nova?”. Era Vladimir Brichta, que estreava na Globo em Porto dos Milagres.

O que aconteceu com cada um dos jovens desconhecidos, acredito, todos os que leem esse texto sabem e, depois deste enorme nariz de cera (jargão para definir uma prolixa introdução que pode tornar a matéria chata e confusa, embora o autor sempre duvide disto), vamos ao que interessa.

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Vinte cinco anos depois, A Máquina voltou renovada e pode ser vista no recém-inaugurado Teatroiqué, no Butantã, um espaço bem legal, difícil de achar sem o GPS, mas com todo o conforto que o paulistano gosta. O resultado é tão bom, forte e emocionante como o de antigamente, mesmo descontada a memória afetiva, porque conserva a energia e a exata mensagem do original sem a preocupação de adaptações desnecessárias. Os protagonistas são jovens e podem até ser desconhecidos do grande público, Alexandre Ammano, 27 anos, Bruno Rocha, 30, Marcos Oli, 29, e Vitor Britto, 28, do coletivo paulistano Ocutá.

Quem viu O Avesso da Pele, versão teatral do romance de Jeferson Tenório, vai saber de quem se trata. Para o papel de Karina, a escalada é Agnes Brichta, de 28 anos, a filha de Vladimir, o primeiro dos moços a ganhar fama, e a presença só aumenta os significantes entre significados.

É, gente, o tempo passou, aqueles mesmos 25 anos que podem ser hoje ou podem ser daqui a 50 anos, que o texto tanto frisa. A Máquina virou um clássico mais comentado que visto, ganhou uma adaptação sem graça para o cinema em 2006 e, sob a mesma direção de Falcão, com codireção e preparação corporal de Gustavo Falcão, comprova o encanto da história de Antônio e Karina no palco.

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Na pacata cidade de Nordestina, ninguém alimenta grandes perspectivas – a não ser a de sair de lá. E muitos, muitos habitantes buscam uma nova vida em outro lugar. Esta é a fixação de Karina, que assiste às novelas e deseja ser atriz como tantas moças que invadem a sua casa pela tela da televisão. Decidida, a garota passa os dias ensaiando diferentes cenas, treina o beijo técnico com Antônio e acredita que deve se preparar para a hora em que aparecer a chance de sua vida.

Antônio não quer perder a namorada de jeito nenhum e resolve sair de Nordestina para conhecer o mundo e trazê-lo ao encontro de Karina. A fábula se instaura e atravessa um quarto de século imune à passagem do tempo – tanto na ficção quanto na realidade. Alexandre Ammano, Bruno Rocha, Marcos Oli e Vitor Britto movimentam com os pés a mesma plataforma giratória, suam aos montes – até porque os figurinos são mais pesados – e ressignificam o texto em um diálogo coerente a 2025.

Quase tudo é igual nesta versão de A Máquina em comparação com a de 2000. Uma diferença, entretanto, é percebida, mas se impõe com surpreendente naturalidade. No lugar em que brilhavam quatro intérpretes brancos (Brichta, Falcão, Karina e Wagner) e apenas um preto (Lázaro), agora temos quatro artistas pretos, além de Agnes, a atriz convidada, que se identifica como parda.

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O Coletivo Ocutá foi fundado em 2019 por quatro artistas-pesquisadores pretos, e a atenção deles para o livro O Avesso da Pele, lançado em 2020, foi imediata. Quer dizer, não só a deles, mas como de qualquer pessoa que gosta de literatura e reconhece quando está diante de uma obra diferente. Na adaptação para o palco, dirigida por Beatriz Barros, os quatros atores se revezam como Pedro, o rapaz que reconstitui a vida e a morte do pai, o professor Henrique, assassinado em uma abordagem policial.

O espetáculo gerou comoção – muito inconscientemente pela força do livro –, correu o país em festivais e temporadas regulares e se tornou um marco desta cena discursiva da atualidade, principalmente porque ali não há só discurso, mas história, encenação e personagens.

A estrutura de A Máquina não é muito diferente da de O Avesso da Pele – isso fica explícito no quanto Ammano, Britto, Oli e Rocha se mostram à vontade como Antônio. Tudo é enérgico e quente naquele jogral poético e é pulsante a reação da plateia heterogênea em perfis e idades, que chega a dar aplausos em cena aberta em vários momentos. Coisa rara, bem rara, ainda mais porque não estamos falando de uma produção com astros do audiovisual.

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Quando se tem poesia, qualquer adaptação fica forçada e este é o grande mal deste tempo em que tudo precisa ser atualizado porque, dizem, nas últimas décadas, o mundo mudou demais. Nos clássicos, saltam aos olhos temas recorrentes que não costumam abandonar as pautas – e, por isso, são chamados de clássicos. Nordestina é o microcosmo do Nordeste e muitos, por causa da falta de oportunidades de trabalho ou sobrevivência, apostam que só existe chance saindo de lá. Quando se fala em carreira artística, então, nem se fala e o elenco de A Máquina original fez da peça o seu passaporte para o “mundo” imaginado e, neste caso, propiciado por Falcão. Os sonhos de Karina não são tão despropositados.

Não há inserções tecnológicas, referências aos celulares, discursos relacionados ao racismo ou à xenofobia, tudo em A Máquina é fabular. Ninguém se preocupou em pensar como seriam Antônio e Karina em 2025 ou derrapar no delírio de que a mocinha poderia almejar o status de influencer, já que a bolha da classe média intelectualizada adora pregar que telenovela e televisão aberta já eram.

Outra notável questão mantida na montagem é o equilíbrio de um elenco coral. Em 2000, o que chamava a atenção era a afinação de intérpretes talentosos em cena, sem a necessidade de se preocupar qual deles se saía melhor ou aparecia mais. Entre os integrantes do Ocutá, a mágica se mantém, avessa às vaidades e sintonizada com o coletivo. Não existe o Antônio de Ammano, Britto, Oli e Rocha, todos são os Antônios, com suas personalidades e técnicas particulares que sutilmente são notadas.

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Em um ano em que o teatro se encarregou de provocar a memória dos espectadores – In on It e Música para Morrer de Amor são outros exemplos de desafios emocionais ao público veterano – é inevitável se sentir um pouco Antônio neste trânsito de épocas. É hoje, é daqui a 25 anos ou, quem sabe, nos próximos 50 anos. A máquina corre, a vida acontece e cada um ganha o seu mundo.

Rever A Máquina renovada com o mesmo vigor de 25 anos atrás prova que tudo o que o tempo nos oferece é bom demais e, quando a vida anda para a frente, não há mesmo nada do que reclamar. Afinal, este que vos escreve, que completou 25 anos em 2000 e, agora, tem 50, só publica estas linhas aqui por conta disto.

 

Nota: As informações e opiniões contidas neste artigo são de inteira responsabilidade de seu/sua autor(a), cujo texto não reflete, necessariamente, a opinião do INFOTEATRO.

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Dirceu Alves Jr.

Dirceu Alves Jr.

É jornalista, escritor e crítico de teatro, trabalhou em Zero Hora, IstoÉ Gente e Veja São Paulo e publicou os livros Elias Andreato, A Máscara do Improvável (Humana Letra) e Sérgio Mamberti, Senhor do Meu Tempo (Edições Sesc).

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