Colega do Infoteatro, o ator Chico Carvalho publicou em sua rede social no domingo, 30, uma frase atribuída ao escritor Raduan Nassar que merece uma reflexão. O autor dos romances Lavoura Arcaica e Um Copo de Cólera teria dito o seguinte: “Eu sempre tive muita dificuldade de privilegiar o escritor como os escritores se privilegiam. O agricultor é tão ou mais importante”.
É sobre isto, só que transportado para o meio teatral, que se trata A Palma, peça de Claudia Barral e Marcos Barbosa, que, sob a direção de Mariano Mattos Martins, ocupa o Instituto Cultural Capobianco, em São Paulo. Até que ponto a arte de representar é um trabalho movido por dedicação e paixão, mas também desempenhado para garantir um sustento ou em que momento se transforma em um estado de espírito capaz de tornar o profissional excessivamente vaidoso e sensível a qualquer frustração?
Indagações como estas valorizam a dramaturgia de Claudia Barral e Marcos Barbosa e mostram uma certa coragem de Mariano Mattos Martins, ator experiente e diretor estreante, de desafiar os próprios colegas ao estimular uma autocrítica sobre sucessos ou fracassos de cada um. A Palma levanta muitas perguntas – o que é saudável e raro em uma história assumidamente ficcional. O mais relevante, porém, é ver uma peça acessível a qualquer plateia, que entende a trama e pode se identificar com os dramas dos personagens que não se restringem à bolha dos artistas.

Se é para fazer uma comparação, A Palma tem relativa proximidade com o filme Malu, dirigido por Pedro Freire e protagonizado brilhantemente por Yara de Novaes. Lançado no ano passado, o longa recupera com liberdades ficcionas a biografia da atriz Malu Rocha (1947-2023), que, devido ao excesso de convicções e baseados, virou refém de um universo particular. Com o tempo, Malu viu sua carreira desmoronar e se tornou uma pessoa autodestrutiva e agressiva com a mãe e a filha, representadas por Juliana Carneiro da Cunha e Carol Duarte. Quem não viu, vale demais a pena.
Em A Palma, a atriz da vez é Vânia Souto (interpretada por Gilda Nomacce), talentosa, visceral e inábil para lidar com o lado prático da vida. Desde criança, ela sonhou com os palcos, mas chegou à maturidade sem conhecer o real estrelato, devendo o aluguel e, com um filho adulto e racional, que não sabe como frear as inconsequências da mãe. Em um teste de publicidade, Vânia se sente humilhada pelo diretor, responde com uma agressão física, e o filho decide interná-la em uma clínica psiquiátrica.
Quais são os limites entre a sensibilidade e o equilíbrio emocional dos artistas? A Palma, como já disse, é feita de perguntas e entrelinhas. Quase nenhuma resposta aparece. Trancada em seu mundo delirante, Vânia tem o seu apartamento invadido por seus dois melhores amigos, colegas da escola de teatro, igualmente talentosos, que tomaram rumos diferentes do dela. Seria uma visita real ou a imaginação de alguém implorando por ajuda para escapar do buraco?

Sérgio (papel de Donizete Mazonas) engatou a carreira nos palcos, mas ganhou fama e dinheiro na televisão, emplacando sucessivas novelas que, se não lhe renderam grandes satisfações, saciaram as ambições financeiras. Marta (interpretada por Verónica Valenttino) talvez tenha sido a mais talentosa dos três, o tipo de artista que representa, canta e dança, só que não soube lidar com as instabilidades e fez do tribunal o seu novo palco. Como advogada, ela garante que se satisfaz vivendo uma nova personagem a cada causa que defende sob um honorário bem pago.
Mentira! Vânia Souto está péssima, saiu da casinha total, mas Sérgio e Marta também não estão nada bem. Aliás, faz parte do discurso do artista convencer a todos que sempre está tudo bem, mesmo com a insatisfação evidente em seus olhos. Sérgio passa o dia inseguro diante dos conflitos do jovem namorado e com a iminência de não ter seu contrato renovado pela emissora, enquanto a bolsa de Vânia é uma farmácia a tiracolo cheia de remédios e outros paliativos que a ajudam a segurar a onda. Perto de Vânia, eles alimentam uma cena para se mostrarem melhores, mas são personagens de um teatro menos espontâneo.
Dentro deste jogo, a dramaturgia de Cláudia e Barbosa recorre às interferências intertextuais para aprofundar os conflitos do trio central. Na ânsia de trazer Vânia para a realidade, eles encenam fragmentos de clássicos que exploram a loucura como ferramentas narrativas.

A entrada de Sérgio no apartamento de Vânia se dá através de um trecho da peça Fala Baixo, Senão Eu Grito (1969), de Leilah Assumpção, sobre uma solteirona surpreendida pela visita de um ladrão. Uma parte de A Gaivota, do russo Anton Tchekhov (1860-1904), é usada para espelhar as angústias da jovem atriz Nina em diálogo com o consagrado escritor Trigorin.
Assim, eles remontam grandes cenas protagonizadas no passado e, neste jogo metateatral, um dos pontos altos é a interpretação de Marta, quer dizer Verónica, para a canção Gota de Sangue, de Angela Ro Ro (1949-2025). O último delírio da protagonista é fazer as malas e embarcar para a França, onde acredita estar indicada à Palma de Ouro do Festival de Cannes por um filme jamais visto pelos colegas.
A espacialidade no Instituto Cultural Capobianco é fundamental, com sua sala intimista, que coloca o público dentro do apartamento de Vânia, devido ao estreito limite entre palco e plateia. A cenografia de Paloma Mecozzi e iluminação de Wagner Antônio enriquecem a cena a ponto de unificar a ambientação e gerar contrastes responsáveis por belas imagens. Os figurinos de Rogério Romualdo, tanto os que são vestidos pelo elenco como os jogados pelo chão, conotam a desorganização dos personagens, assim como os adereços cênicos nada realistas, a exemplo das laternas usadas como telefones.
O sucesso de A Palma, entretatanto, se consuma graças ao poderoso elenco e uma direção que soube abordar o tema movido pelo inconsciente de um artista e não sob uma perspectiva matemática. Nada funcionaria em uma peça sobre atores e atrizes se os intérpretes não estivessem em plena sintonia para se jogar nos personagens ou começassem a julgá-los durante a composição.

Atriz de poderosa presença, Verónica Valenttino, consagrada pelo musical Brenda Lee e o Palácio das Princesas (2022), representa a falsa lucidez, o disfarce de uma razão pronta para se desestabilizar, que dá suporte para Gilda Nomacce nos momentos em que a história cai na comédia. Donizeti Mazonas, ator mais técnico e meticuloso, que, também experiente como diretor, é conhecido por trabalhar o subtexto em recursos que ultrapassa a palavra. O seu Sérgio é o sujeito que se encolheu com o tempo e, depois de tanto administrar o lado prático, surge fragilizado e pouco disposto a dar a palavra final – o que deixa para Marta.
Pode parecer redundante, mas é através de Gilda Nomacce que A Palma formata a sua mensagem e a faz chegar de um jeito forte e lúdico ao receptor. Se o desequilíbrio de Vânia é óbvio, tal característica poderia ser um risco nas mãos de uma atriz que não criasse a personagem com sutilezas a ponto de humanizá-la em suas frustrações. Gilda não constrói a sua Vânia em cima de qualquer arrogância – uma das marcas da Malu representada por Yara de Novaes no filme homônimo – e sim através de um desencanto, um cansaço, uma energia que se esvai ao longo da peça e chega até o final condescendente que remete à cena da personagem Blanche DuBois, da peça Um Bonde Chamado Desejo, de Tennessee Williams (1911-1983).
Com formação psicanalítica, a dramaturga Claudia Barral vem desenvolvendo uma interessante obra que promove oportunas reflexões sempre preocupada em estabelecer uma comunicação com o público. O Cego e o Louco, Cordel do Amor sem Fim, Hotel Jasmim e Madame Blavatsky – Amores Ocultos são exemplos de peças apoiadas em personagens sólidos que não se limitam ao discurso e ficcionalizam situações capazes de ampliar o entendimento da plateia. Talvez A Palma, criada junto do escritor e dramaturgo Marcos Barbosa (autor de Necropolítica, montada pela Mundana Companhia, em 2018), seja o seu mais bem-sucedido exemplar de trânsito entre gêneros e por explorar o inconsciente de uma maneira pouco óbvia.

Sim, a saúde mental comprometida de um trio de artistas frustrados e com dificuldade de encarar a realidade é a premissa de A Palma, baseada em um argumento de Mattos Martins. O diferencial, porém, é que o espectador se vê diante de uma comédia, repleta de tragicidade, mas pulsante, viva, vigorosa, daquelas que fazem o espectador deixar a sala feliz. A reação não é, claro, por causa da temática, que analisada racionalmente é bastante triste, mas porque tudo é embalado pela paixão mobilizadora e contagiante do teatro que faz a fantasia superar e realidade. Em um pacto cênico, a montagem leva o público acreditar que tudo o que é proporcionado pela arte vale a pena.
O responsável por este resultado é Mattos Martins, ator moldado pelo Teatro Oficina de Zé Celso Martinez Corrêa (1937-2023), que aprendeu na prática que teatro, apesar de todas as barreiras, é festa. Em sua primeira direção, o artista dosou a euforia do estreante e a experiência de quem conhece bem o universo dos personagens.
Mattos Martins soube levar ao palco a mensagem de que, apesar da importância de sonhar e deixar a imaginação correr solta, nenhuma festa (leia-se teatro) pode perder uma mínima noção de realidade, porque, se o gelo e a bebida acabarem, todo mundo vai embora e o anfitrião (leia-se o artista) fica falando sozinho.
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