Tenho grande interesse por conhecer mais profundamente a carreira e a vida de atrizes e atores, sobretudo, de teatro. Conhecer suas trajetórias é, invariavelmente, fascinante. Ao iniciarem nesse caminho, o que imaginavam encontrar e quais eram suas angústias e ambições? Como desenvolveram sua vida artística em um país como o nosso, que não respeita a cultura nem as artes, muitas vezes? O que retiraram dessa rica experiência de vida? Quando mergulho nessas histórias, imediatamente viajo no tempo; sinto na pele – de novo e de novo – a emoção intensa, sem romantismos, que é a vida de um ator.
Em minha sexta coluna para Vogue Gente, tratei do assunto, mas da perspectiva de usarmos – nós, jovens atores – as carreiras desses grandes mestres como inspiração, procurando introjetar esse aprendizado. Hoje falo simplesmente pelo prazer do conhecimento. Conhecer essas vidas é conhecer o nosso país, nossas raízes.
O ator Milton Gonçalves, faleceu aos 88 anos, no último 30 de maio, em razão de complicações decorrentes de um AVC. Tive a certeza de que precisava usar este espaço para exaltar, mesmo que de forma singela, a sua grandeza. Ao pesquisar um pouco mais sobre sua vida, deparei-me com duas longas entrevistas: uma em 1998, gravada pela ProTV; a outra, de 2014, registrada pela Rio TV Câmara, cujo acesso é uma dessas maravilhas que a internet propicia.
Recomendo fortemente que você – leitora e leitor – recorra a esses registros. É um deleite ouvir um artista como Milton. Ele chora e ri, se emociona a cada fato revelado. A seguir, selecionei alguns trechos que merecem ser conhecidos.
Os primeiros anos
Nascido em 09 de dezembro de 1933 – em Monte Santo, Minas Gerais – Milton Gonçalves foi o filho mais velho de um casal de colheitores de café. Já em São Paulo, o pai – que teria toques de artista – se tornou auxiliar de pedreiro, e a mãe, empregada doméstica. Ao falar da família, o artista comentou sobre seu irmão Wilson, saxofonista, segundo ele, de mão cheia. Mas completou: infelizmente, o irmão não caiu nas graças do público.
Na capital paulista, assim como os pais, Milton teve de trabalhar. Ainda bem jovem, serviu de babá, trabalhou em gráfica, alfaiataria, fábricas de móveis de vime, como aprendiz de sapateiro, com encadernação, em livraria: “Tudo isso serviu para mim como um grande ensinamento da vida”.
Primeiro contato com as artes dramáticas
E quando as artes dramáticas entraram em sua vida? Contou que costumava ir muito ao cinema; a mãe dizia que era bom, pois serviria para alimentar sua mente pela semana que viria. Agora, o teatro, surgiu por um amigo, Leon, que precisava imprimir o convite para um espetáculo do Clube de Teatro. Milton, à época, trabalhava em uma gráfica. Curioso, perguntou o que era aquilo e o amigo respondeu: “É teatro. Quer ir?”. O amigo conseguiu mais um ingresso e foram juntos:
“Eu não tinha a menor noção do que era teatro.” Muitos de nós, talvez, nunca tenhamos a ideia do que é descobrir, apenas no início da juventude, o que é teatro. A impressão é de já ter nascido sabendo, mas isto está longe de ser a regra – ainda nos dias de hoje. Como pessoas de carne e osso poderiam criar uma emoção tão grande? Aquilo produzia um efeito catártico em mim.”
O amigo perguntou: “Gostou?”. Ele disse: “Gostei”. Como era um pouco metido – conforme suas próprias palavras – completou: “E sou capaz de fazer.”
Carreira
Começa no teatro amador e, sob a chancela de ninguém menos que o diretor Augusto Boal, entra para o Teatro de Arena de São Paulo: “Para mim, foi a descoberta do universo”. Sua estreia no Arena foi em 1957, no elenco de Ratos e Homens, peça do autor John Steinbeck.
Escreveu, ao longo da vida, dois textos teatrais. Um deles foi encenado pelo Teatro Experimental do Negro (TEN), com direção de Dalmo Ferreira.
Em relação ao audiovisual, no cinema nacional, seu grande sucesso foi em A Rainha Diaba, de 1974: “Com esse filme ganhei os quatro melhores prêmios de cinema do Brasil. Claro que só ganhei esses quatro prêmios por causa do elenco que estava ao meu lado, me apoiando, por causa da produção que estava me apoiando, por causa do Antônio Carlos, diretor, que confiou em mim… e por minha causa também; quando falei com minha mulher a esse respeito, ela disse: ‘Vá e faça com tudo aquilo que sabe’. Tudo que usei para criar aquele personagem, foi oriundo do Teatro de Arena de São Paulo, dos meus amigos e companheiros.” Ainda no cinema, mas dessa vez internacional, participou de nove filmes.
Milton Gonçalves entrou para a TV Globo desde sua fundação, em 1965. Atuou em mais de 40 novelas ao longo da vida, e dirigiu outras mais. Foi diretor, por exemplo, do grande sucesso internacional que foi Escrava Isaura. Caiu no gosto popular também por diversos papeis cômicos. Como ele mesmo explicou, era responsável por fazer “escada” nas cenas cômicas (escada é o termo usado para denominar o ator que em cena prepara a piada para outro realizar).
Um marco na sua carreira televisiva foi em Pecado Capital (1975), novela em que interpretou o renomado médico Dr. Percival. Ao dar vida à personagem, Milton Gonçalves começou a quebrar o estereótipo aos quais eram – e ainda são – enquadrados os atores negros. Ele abriu caminho para muitos que vieram depois.
Preconceito
“Eu sinto falta de uma discussão melhor, de uma profundidade maior. É necessário que a gente pense melhor. Uma coisa que me incomoda muito é que nos núcleos que mandam no município, no estado e no país, tem poucos negros. Dizer que é porque não há negros capacitados é mentira. Porque, se você olhar direitinho, têm brancos que não são capacitados e estão lá mandando. Nós estamos nos esquecendo de nos politizar. Nós temos que mudar isso. Eu estou falando sério. Nós temos que mudar isso. Isso tem que ser uma coisa de hoje para amanhã, para resultar daqui a vinte anos. Porque se nós não fizermos isso, vamos continuar a ser desrespeitados. Sou um brasileiro, negro, descendente de africanos. Não quer dizer, necessariamente, que sou um bom caráter. Não, não é isso. Sou uma pessoa que procura pagar as minhas contas, ter uma relação de afeto com meus filhos, meus amigos, com quem conheço. Tenho que respeitá-los como tal, e quero ser respeitado. Não quero ser figura exótica. Eu, hoje, estou aqui, secretário geral dos sindicatos dos atores. Tem alguns que não gostam disso, porque sou negro. E não sou burro, eu não sou burro. Falo um pouquinho de cada língua, leio meus livros. Não brinquem comigo, não me desrespeitem.”
Na entrevista de 1998, quando perguntado se o Brasil era um país racista, o ator afirmou que não era, mas que havia, sim, pessoas racistas. Entretanto, noutra entrevista de 2014 – dezesseis anos depois – questionado sobre o mesmo fato, respondeu sem titubear: “O Brasil é um país racista”. E, completou: “A cultura brasileira é preconceituosa. Não só contra negros, mas contra deficientes físicos, mulheres, é preconceituosa contra quem não se comporta de acordo com a forma com que essa sociedade deseja. (…) O que me irrita no preconceito, no racismo – não é o possível prejuízo – é a burrice de quem se acha superior”.
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Os mais jovens – assim como eu – têm de buscar, cada vez mais, o conhecimento sobre a trajetória dos nossos grandes artistas. Antônio Pitanga, grande amigo de Milton Gonçalves, e igualmente grande ator, afirmou que o artista trazia “Uma nobreza que te banha de riqueza e de referência”. Referência, é a isso que me refiro.
Ao final da entrevista de 1998, lhe foi perguntado:
“Quem é você?”; e o ator respondeu: “Um ser angustiado em busca da verdade.”
Ao ouvir essa afirmação, imediatamente, recordei uma frase famosa, sobre a verdade e o teatro, que diz: “No teatro tudo é verdade, até a mentira”. Coincidentemente, essa conhecida frase é de Augusto Boal, o mestre de Milton!
Este texto foi, originalmente, publicado no site da revista Vogue Brasil, dentro do segmento ‘Gente’. Para acessar a publicação original, clique aqui.