As dramaturgas Consuelo de Castro (1946-2016), Leilah Assumpção e Isabel Câmara (1940-2006) estrearam na virada das décadas de 1960 para 1970 enfocando mulheres em busca de um lugar no mundo. Maria Adelaide Amaral deslanchou anos depois ao retratar uma classe média atingida por crises íntimas e coletivas. Com sátiras políticas, Jandira Martini (1945-2024) ganhou destaque entre os anos de 1980 e 1990 e, naquela última década do milênio, Noemi Marinho e Renata Melo contribuíram para a renovação da escrita feminina.
Silvia Gomez e Michelle Ferreira, formadas no CPT do diretor Antunes Filho (1929-2019), são nomes consolidados na década de 2010 em flertes entre o absurdo e a provocação social. Características como estas foram esmiuçadas nos últimos anos por Dione Carlos, Grace Passô, Angela Ribeiro e Ave Terrena, entre outras, voltadas paras as chamadas pautas urgentes. São tantas as dramaturgas em diálogo com o seu tempo, mas, como profissionais na luta pela igualdade, cada vez mais colocam em cena obras capazes de ultrapassar a mera identificação de gênero.
É neste caso que se enquadra o espetáculo Adulto, escrito por Fran Ferraretto e dirigido por Lavínia Pannunzio, cartaz do Sesc Ipiranga, em São Paulo. É uma peça escrita por uma mulher, dirigida por uma outra mulher e, claro, deflagrada sob o ponto de vista feminino. É louvável, no entanto, que em momento algum assume contornos de militância em uma história sobre uma geração que virou gente grande sem maturidade para enfrentar a vida.

Sara e João (interpretados por Fran e Iuri Saraiva) formam um casal soterrado pelas idealizações. Superprotetora mesmo que não se enxergue como tal, ela trabalha doze horas por dia em uma agência como revisora de textos para conseguir fechar as contas da casa e, inconscientemente, satisfazer as vontades do marido.
João, por sua vez, é o ator em crise que dorme até as 10 da manhã e recebe depósitos da mãe em sua conta bancária. O personagem perfeito, na visão do artista, nunca chega as suas mãos e aqueles que só lhe renderiam algum cachê razoável são desprezados sem uma avaliação prática.
Enquanto isso, Sara trabalha, trabalha, trabalha e acumula mágoas. Seu sonho é ser dramaturga. Há anos, desenvolve uma peça que não consegue terminar e tampouco encontra alguém interessado em ajudá-la a alavancar o projeto.
O contraponto dos dois é Vitor e Paula (vividos por Sidney Santiago Kuanza e Jennifer Souza), um casal que parece afinado em suas ideias e objetivos – o que leva Sara a enxergar o abismo de seu casamento. Em uma viagem de trabalho, Sara traiu João e foi o suficiente para deflagar um colapso que seria reducionista atribuir somente à visão machista do marido.

Está tudo errado para Sara e João. No passado, ele, o ator branco, rico e bem relacionado, abriu os contatos para Vitor, o amigo preto e pobre, que merecia uma chance. À beira dos 40, ele enxerga Vitor destacado no mercado que não presta mais tanta atenção ao seu perfil. Paula, uma antropóloga realizada no trabalho, vacinada contra a vaidade comum aos artistas, perdeu a paciência com João e tenta blindar o marido.
Agora, Vitor se prepara para rodar um filme no Uruguai, um tremendo personagem, e, como ficará seis meses fora de casa, ele e Paula abriram a relação. Não falta mais nada para afundar de vez a autoestima de João e para Sara assumir o quanto se anula no casamento.
Você pode pensar em uma peça ambientada em uma sala de estar com os quatro personagens sentados em um sofá ou circulando perto de uma mesa de jantar. Não, não é nada disso. Neste ponto, Adulto salta de uma dramaturgia eficiente e convencional para uma dramaturgia eficiente e arrojada e tudo porque recorre à metalinguagem – aquele recurso que mostra uma peça dentro da peça e pode não ser tão inovador ou original, porém aqui revigora a abordagem.
A peça escrita por Sara, provavelmente depois de se separar ou se acertar de vez com João, o que não interessa, é ensaiada e acompanhada pelo público, que, desde a entrada no teatro, se sente meio parte do jogo, nem que seja pelo excesso de iluminação ou por interações com os artistas.

O desenho de luz construído por Gabriele Souza é dos mais interessantes e quebra qualquer quarta parede. Existe uma alternância na iluminação que fecha a cena no palco e, pouco depois, a direciona novamente à plateia. Tudo no cenário, criado por Mira Andrade, tem mais de uma função. Ora é uma sala de ensaios, ora é a casa de João e Sara e, por vezes, o apartamento de Vitor e Paula. A mesa é aquela do jantar ou de reuniões e pode ainda virar uma cama, assim como a cadeira é a máquina de lavar.
Em Adulto, tudo é moderno e contemporâneo sem parecer forçadamente moderno e contemporâneo. A pretensão, pelo menos, não ficou em primeiro lugar. É a peça escrita por uma mulher e dirigida por outra, protagonizada pela atriz que se testa como dramaturga, assim como Sara, que quer mostrar a personagem oprimida pelo marido e ainda apresenta o casal preto sem uma adequação forçada.
Como encenadora cada vez mais frequente, a atriz Lavínia Pannunzio, de 59 anos, lapida um olhar voltado para a contemporaneidade que desvia dos arroubos comuns à juventude. Graças à maturidade, ela conserva o ator ou a atriz como personagens sem deixá-los expostos ao caráter discursivo de porta-vozes das mensagens dos tipos defendidos.
Nesta fronteira entre a ficção e a realidade, Lavínia amplia as propostas de Adulto, seja na metalinguagem ou no drama dos casais, e faz questão de contar uma ficção. Para isso, ela expande as possibilidades da dramaturgia e redimensiona os significados dos comportamentos dos personagens. Não busca excessos de efeitos e atinge uma naturalidade que só aproxima os intérpretes do público – afinal, a plateia sente falta de ver os artistas falando no palco como gente comum e não como pregadores religiosos os políticos.

No programa distribuído no saguão do Sesc Ipiranga, Fran Ferraretto abre o seu texto definindo Adulto como “uma peça que fala sobre a emancipação da mulher”. Ouso provocar uma discussão para pensar que Adulto vai além da questão feminina e trata das tentativas de emancipação de uma geração que cresceu acreditando que poderia contar com o outro e encontraria reciprocidade nesta expectativa.
Podemos verificar isto não apenas no relacionamento de Sara e João e na amizade de João e Vitor. A única personagem realmente independente é Paula, que é madura na visão prática das relações. A escalação de Jennifer Souza para o papel é um ganho. Como a atriz menos experiente do elenco, ela tem uma disponibilidade intuitiva para a cena. A Paula de Jennifer fala com as mãos, com os cabelos e, assim, espontânea, a personagem minimiza a afetação que norteia o universo dos artistas, no caso o dos outros personagens.
Falando no elenco, Iuri Saraiva, um dos mais expressivos intérpretes da cena atual, entrega João com a energia habitual e consegue ser o único do quarteto a exibir diferenças realmente perceptíveis no processo metalinguístico, quando dá vida ao ator que ensaia a peça. João é frágil, manipulador, invejoso, oportunista e sensível, tudo em uma mistura que leva o público a comprar as contradições. O mesmo não pode ser analisado em relação a Sidney Santiago Kuanza, que, irregular, enfraquece Vitor com uma aura juvenil, principalmente ao repetir nos embates com Paula a linha adotada na contracena com Saraiva.

Como autora, Fran detém a facilidade do domínio sobre Sara, e o conhecimento da personagem ajuda a defendê-la no papel de uma heroína com visíveis contradições. Uma delas é o fato de encher a boca para dizer que paga as contas. Só que vive na casa presenteada pela sogra com quem não se relaciona bem – o que pode parecer um clichê, mas conota imaturidade – ou se atrasar para um compromisso em que o marido acreditaria que poderia fazer contatos e não assumir que preferiria não ir.
Ver Fran em cena prova a sensatez da atriz que se transforma em dramaturga e coloca na boca o próprio texto sem recorrer a uma autoficção. Ela dispensa a tão recorrente voz em primeira pessoa e isto é reflexo de um exercício anterior de um afastamento seu para encontrar uma aproximação na veia autoral.
Profissional formada no Club Noir, companhia do diretor Roberto Alvim e da atriz Juliana Galdino, Fran, de 36 anos, vem de duas experiências bem-sucedidas na dramaturgia infantil e infanto-juvenil antes de chegar ao atual Adulto.

Em A Minicostureira, adaptação do conto A Moça Tecelã, de Marina Colasanti (1937-2025), dirigida por Cynthia e Débora Falabella em 2018, a atriz e autora explorou a imaginação de uma menina entre linhas, agulhas e tesouras. O seu segundo texto, Valentim Valentinho, dirigido por Marcelo Varzea e Erica Rodrigues em 2023, tratou do bullying sofrido por um garoto que não se encaixava em um perfil normativo.
Este que vos escreve confessa não ter visto nenhuma das duas peças. Ouso, entretanto, palpitar que elas ampliaram o olhar de Fran para universos que não sejam aqueles em que ela esteja envolvida. O grande mérito de Adulto é que não se trata de uma peça somente sobre mulheres, mas sobre uma geração que espelha conflitos desta e de outras gerações. É justamente isto que faz com que alguns dos textos de Consuelo de Castro, Leilah Assumpção, Isabel Câmara e Maria Adelaide Amaral, por exemplo, se descolem da temática feminista e renovem significados de tempos em tempos. Adulto, vale apostar, pode seguir por este caminho.
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