Sabem como são aqueles episódios especiais da vida, que ao lembrarmos parece que ainda estamos vivendo, em que a sensação se incorpora à nossa memória? Assim foi minha visita à casa do diretor e ator Amir Haddad – entidade do nosso teatro. Escrever sobre este encontro, especificamente para ouvir suas histórias, me comove a alma. Após nossa entrevista, na quarta-feira, dia 21 de setembro de 2022, posso dizer que a vida ganhou novas cores e afetos. Falar com Amir Haddad instigou e reconfortou minha alma de jovem atriz…
Meu objetivo neste texto é registrar como foi essa conversa, não a conversa em si, que – diga-se de passagem – foi sensacional. A entrevista completa pode ser assistida através das redes sociais do Infoteatro (@infoteatro_). A proposta, aqui, será diferente…, isto porque, por trás da entrevistadora sorridente que se poderá ver em vídeo, havia uma chuva de sentimentos e sensações, que eu gostaria de compartilhar.
Esta aventura começou quando, muito gentilmente, o autor Thiago Bechara me passou o contato de Amir Haddad. Ao perguntar a ele, por mensagem, como preferia que fosse a entrevista, respondeu o mestre: “presencial”. Prontamente, marquei a entrevista com a sua secretária. Porém, ao saber do endereço, pensei: “Já era…”. Fica em Santa Teresa, Rio de Janeiro. Quis avisar que moro em São Paulo e que, infelizmente, não poderia descer a serra para encontrar o mago dos palcos. Mas, então, pensei: “Quando terei, novamente, a oportunidade de conversar com Amir Haddad, em sua própria casa, sobre aquilo que mais amamos neste mundo, o teatro? Não estaria a vida me dando uma oportunidade de ouro?”. E, sim, ela estava…
Isis – a secretária de Amir – perguntou: “Você mora no Rio?”. Respondi, como se diz, na lata: “Não (!), mas estarei aí!”.
Uma semana depois, lá estava eu, sozinha, no avião, rumo ao aeroporto Santos Dumont – em plena quarta-feira – acompanhada das mais variadas expectativas. Como já estava emocionada, e bastante ansiosa com o que estaria por vir, coloquei meus fones de ouvido para ouvir uma canção bem bonita, com o intuito de me acalmar. Escolhi Alguém Cantando, de Caetano Veloso, na versão do álbum Ofertório:
Alguém cantando longe daqui
Alguém cantando longe, longe
Alguém cantando muito
Alguém cantando bem
Alguém cantando é bom de se ouvir
O clima na capital fluminense era quente para uma paulistana, mas avesso aos cariocas; sol entre nuvens e muito vento. Cheguei a Santa Teresa bem antes do combinado. Fiquei horas sentada na mesa de um bar repassando todas as perguntas. Seriam perguntas demais ou de menos? Com certeza ele já respondeu a tudo isso em outras entrevistas… Não vou mais usar minhas anotações, falei comigo mesma; vou perguntar o que vier à mente na hora. Decidi que seria uma conversa.
Ao chegar nas redondezas do prédio, ainda minutos antes, deparei-me com um poste de concreto armado, com o desenho colorido do artista, em que havia a inscrição: “Amir Haddad: Morador dessa rua há mais de 30 anos.” Que emoção… Era como se eu estivesse atravessando um portal, e acho que foi isso mesmo.
Finalmente chegou a hora. Respirei fundo, apertei a campainha. Uma voz afetuosa atendeu me perguntando se eu sabia chegar e me deu as coordenadas para subir uma pequena escada até seu apartamento de cobertura – intui que fosse o próprio Amir Haddad.
Antes de continuar, é importante que se faça uma brevíssima apresentação. Amir Haddad, natural de Minas Gerais, é uma entidade do teatro brasileiro por muitos motivos. Além de ser um artista, com “A” maiúsculo – por sua sólida trajetória e pelo profundo conhecimento que tem das artes cênicas, por sua sensibilidade não apenas para com a arte, mas para com o outro – ele faz parte da história do teatro nacional. Um dos fundadores do icônico Teatro Oficina, ao lado de José Celso Martinez Corrêa e Renato Borghi, Amir tornou-se fundamental para o fortalecimento do teatro de rua. Seu grupo “Tá Na Rua”, com sede na Lapa (RJ), tem vasta trajetória, desde a década de 1980. Também em 1980, fundou o grupo A Comunidade. A contribuição de Amir Haddad para inúmeros grupos de teatro e jovens atores – ressaltando sua contribuição para a Escola de Teatro de Belém – é imensurável. É ele o diretor de A Alma Imoral, monólogo interpretado por Clarice Niskier, que está em cartaz há dezesseis anos – tamanho o sucesso.
Ao chegar em seu apartamento, Amir estava à porta com um sorriso. Pediu para que eu aguardasse um minuto e, enquanto isso, sugeriu que eu aproveitasse a vista de sua varanda. Dá para ver o Rio de Janeiro inteiro de lá! Do céu ao mar, aviões mil, os telhados debruçados sobre o morro, o Pão de Açúcar… Deu até para ouvir um violino tocando ao longe. Simplesmente incrível. Além da vista para a Cidade Maravilhosa, o apartamento em si, exala história e arte. Fotos, quadros, esculturas, cores, uma pérola ao estilo da cultura latino-americana.
Antes que me esquecesse, entreguei a ele uma lembrança que havia providenciado – eu não poderia chegar de mãos vazias na casa de Amir Haddad: Ele, gentil como só, foi logo exclamando: “Que delícia (!), bolo de rolo, adoro!”.
Antes de iniciarmos a entrevista, propriamente, Amir sentou-se comigo na varanda. Perguntou sobre mim, mostrou-se surpreso quando revelei que havia ido ao Rio de Janeiro unicamente para entrevistá-lo: corajosa você, menina danada… Como estava nervosa, falei tanto, mais tanto… – sou do tipo que, quando nervosa, falo pelos cotovelos. Em determinado momento brinquei: “Eu vim para entrevistá-lo, mas sou eu quem está falando…”. “Mas quero saber”, disse Amir sem hesitar, com a paciência dos grandes de espírito.
Decidimos realizar a entrevista do lado de dentro. Fiz alguns testes de câmera e som. Um vento veloz entrava pela grande janela da sala. Apesar de preocupada com a qualidade da gravação, tive a sensação de estar flutuando, como em um veleiro que paira sobre as águas. Tudo pronto para começar!
A conversa foi incrível. Não foi do tipo que não se vê o tempo passar, isto porque, quando terminamos, senti que havia uma transformação dentro de mim – vivi intensamente cada palavra dita por ele. Uma chama de esperança reacendeu para mim, não apenas por algo que Amir tenha dito, mas por eu estar ali, em pessoa, diante do teatro – essa foi a impressão: eu estava diante do teatro, vivo. No fim das contas, o teatro é a junção das pessoas que o constituem. Como confirmou Amir: “Eu não tenho o teatro como uma entidade separada de mim. (…) Eu posso dizer que o teatro é minha própria vida.”
Aliás, ao falar da morte, percebi a consciência e humor do diretor sobre o desconhecido, um depoimento que vale ser assistido. “Ser ou não ser? Eis a questão.”, até Hamlet, de William Shakespeare, ouvi em suas palavras.
De histórias da escola, à concepção do Oficina, sua relação com Augusto Boal e Ruth Escobar, foram alguns dos assuntos. Sobre a importância do – mais do que ser – estar em cena. Além disso, muitos depoimentos sobre sua concepção como diretor: “Montar uma peça, não é montar uma peça. Mas, justamente, desmontá-la.”.
Quando terminamos a conversa, agradeci com todo o ar dos meus pulmões. Senti ter realmente conseguido demonstrar como estava agradecida. Disse a ele que eu também amava o teatro – meus olhos ficaram marejados.
Antes de sair, ao me despedir, ele me deu um abraço bem apertado e terno. Busquei registrar aquelas sensações na memória, o clima, as casas e paisagens, os sons da mágica Santa Teresa. E, sobretudo, a presença do mestre.
Depois de horas, ainda tocada pelo que acabara de viver, uma frase dita por Amir Haddad não me saia da cabeça: “Aqui mora o teatro!”. Aqui mora o teatro… E eu estive lá.
Na volta para São Paulo – dessa vez, de ônibus – embalou-me a mesma trilha sonora, mas sem nervoso, apenas felicidade.
A voz de alguém quando vem do coração
De quem mantém toda a pureza
Da natureza
Onde não há pecado nem perdão.
***
Meus agradecimentos especiais a Thiago Bechara por me proporcionar esse encontro. Em breve, novidades de projeto envolvendo Amir e Thiago por aqui.
Nota: Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Vogue Brasil.
Este texto foi, originalmente, publicado no site da revista Vogue Brasil, dentro do segmento ‘Gente’. Para acessar a publicação original, clique aqui.