O que eu mais gostava era que os atores fossem invisíveis – que eles não estivessem ao meu alcance. Por isso eu preferia sentar longe do palco, se possível lá atrás, no setor mais afastado da plateia, longe, bem distante – até hoje não entendo quem batalha para conseguir aquelas cadeiras coladas ao palco, com o nariz colado ao palco, acho uma burrice tremenda… Como espectador que eu era, eu gostava de enxergar a cena por inteiro, todo o recorte da cena e o ator dentro dela. Talvez porque se eu visse o rosto do ator de perto eu tivesse a constatação de que a realidade dele era semelhante à minha, e isso, penso eu agora, desfazia um pouco o encanto de tudo. Encanto, essa é a palavra.
Eu me interessei por teatro muito em função dessa palavra, e porque um teatro em específico me confirmou que era exatamente isso o que desejaria fazer da vida quando eu fosse adulto, ser acometido por encantamentos como aqueles atores que eu via de longe, e reproduzir esse efeito miraculoso para a plateia. Vejam bem, o teatro, o edifício teatral, não os atores, foi o responsável por me encantar, e me encantei por consequência, é claro, pelos atores dentro desse território encantador. Eu era o primeiro da fila. Esperava o bilheteiro abrir o acesso à plateia para subir correndo e sozinho aquelas escadas e dar de cara com o espaço enorme e vazio das fileiras das poltronas. Eram 1156 lugares, lembro direitinho. Lá adiante o palco italiano com a cortina fechada. Onde estavam os atores que logo iriam aparecer diante de mim, de todos nós? Sei lá. Era esse “sei lá” que me interessava. E que só era possível porque aquele teatro em específico produzia esconderijos, era um teatro que mais escondia do que revelava. Um teatro de palco italiano com cortina que tapava o cenário da peça, e fazia sumir os atores.
Sempre gostei dos atores porque eles eram inacessíveis a mim, eram feito da matéria do sumiço e do esquecimento. Acho que é por essa composição mágica que a presença deles – quando faziam-se presentes – me causava tanto espanto e admiração. Porque eu sabia, e eles sabiam, que essa aparição era coisa momentânea, logo voltariam a sumir. E sumiam porque esses atores pertenciam a esse teatro afeito a sumiços. Palco italiano e cortina. Que maravilha.
Esse teatro de que falo é o Teatro Cultura Artística. O teatro da minha adolescência. Fui muitas vezes lá para testemunhar – de longe – atores maravilhosos tomarem chá de sumiço bem diante do meu nariz. Foi esse teatro – esse edifício teatral – que me fez querer ser ator, e ir me dedicar a estudar teatro na faculdade de artes cênicas da Unicamp. Pois eu voltei lá depois da reforma, agora ele está reformado, mas reformado para espetáculos de música, não de teatro. Não há mais urdimentos, não há mais cortinas, rotundas, bastidores. Não há mais o palco italiano. Tudo aberto, iluminado, tudo à mostra, sem segredos, sem cantos escuros, esconderijos. Uma sala linda, mas toda ela revelada. Fiquei feliz e triste ao mesmo tempo. Foi lá no Cultura Artística que vi por 7 vezes O Mistério de Irma Vap com Marco Nanini e Ney Latorraca. Os dois eram espetaculares. Era um espetáculo dedicado à sombra, ao truque, ao que não é visto, ao que precisa ser suprimido do olhar da plateia para que aquilo que fosse mostrado no instante em que fosse mostrado pudesse ter algum interesse… E como era interessante. O teatro da minha adolescência, aquele teatro que produzia encantos porque eu podia ver tudo de longe, distante, sem que ninguém quisesse me provar da realidade de nada. Mistério, apenas mistério. E me lembro agora também dessa montagem recente do Mistério de irma Vap em que o diretor dizia o seguinte: vamos revelar a troca de figurinos dos atores, vamos mostrar tudo à plateia, na montagem original ninguém entendia a história, era um show de virtuoses, mas agora vamos mostrar como tudo acontece, trazer à coxia para o palco e, assim, faremos uma homenagem ao teatro ao mostrar os mecanismos de construção dos truques diretamente aos olhos da plateia… Ai ai ai. Já não se fazem mais teatros como antes… Tanto os teatros, os edifícios teatrais, como aquilo que acontece em cima do palco, agora com atores que abrem mão dos segredos inerentes ao ofício de ator para tentar transformar tudo em algo concreto, comprovável, real. Que saudades dos tempos em que era o encantamento o que nos levava até aos teatros, levava a nós, espectadores, e levava os atores também. Todos nós, hoje, tão reais e chatos. Saudades.
Nota: As informações e opiniões contidas neste artigo são de inteira responsabilidade de seu/sua autor(a), cujo texto não reflete, necessariamente, a opinião do INFOTEATRO.