Você está na cidade de:

Atuação e Atualidade para Timó

Coluna Por Gabriela Siqueira Bitencourt

Recentemente, visitei o complexo da Funarte no centro de São Paulo. Fiquei com um sentimento contraditório. Se, por um lado, é bom prestigiar um aparelho cultural público, em pleno funcionamento, é também triste lembrar que os espaços culturais da cidade têm sido mantidos sob constante ameaça do poder municipal – como aconteceu recentemente com o Teatro Vento Forte e, agora, com o Teatro de Contêiner.

O que me levou, num domingo à noite, às ruas do centro foi a peça A dama de copas e o Rei de Cuba, em cartaz na Funarte até o dia 15 de junho. O texto, escrito em 1974 por Timochenco Wehbi (Timó), já rendeu uma bela adaptação para televisão com Consuelo Leandro e Lúcia Mello, gravada em 1976, que aproveitou a inventividade divertida das situações cênicas e a linguagem áspera, zombeteira (e, por vezes, cruel) para pintar a vida das duas protagonistas, Tita e Inha. Forçadas à convivência e a algo próximo da amizade pela necessidade financeira, elas dividem um quarto de pensão em um bairro pobre da São Paulo daquele período. Operária de uma fábrica têxtil e religiosa, Inha vive contrariada com a vida noturna de Tita, aspirante à estrela, cuja carreira frustrada de cantora é limitada às duras noites de cabaré. O instável equilíbrio de seu cotidiano é abalado com a aparição de um misterioso pretendente encomendado por correspondência. Rispidez, desconfiança, desentendimento e solidão aproximam essas duas parceiras improváveis em uma espécie de farsa trágica, retrato engenhoso das condições de vida e sensibilidade de duas trabalhadoras urbanas da década de 1970.

Na montagem da Cia Escandalosa, dirigida por Camilo Schaden, a surpresa reside sobretudo na concepção de atuação. Na pequena plateia (lotada) da sala Carlos Miranda, sentamo-nos diante de um quarto situado no centro do palco, disposto enviesadamente e delimitado por duas paredes cênicas. Em sua aparente simplicidade – as paredes em armação de madeira e pano, com duas portas e uma janela, duas camas, uma pequena mesa, um armário e uma estante –, a estrutura cenográfica produz um efeito de precariedade que situa, socialmente, as duas moradoras da periferia paulista. Além disso, os poucos objetos em cena, aliados ao figurino, marcam a distância temporal: pressentimos que tudo se passa em torno de 1970. Se há alguns elementos, na construção do espaço cênico, que induzem à expectativa de uma encenação naturalista, esta é quebrada imediatamente a partir da entrada de Inha (Priscilla Carbone). Com o rosto coberto por uma densa maquiagem branca, ao estilo de uma máscara cômica, sua técnica de atuação é quase pantomímica em seu gestual exagerado, demonstrativo. A técnica vocal também busca, com a predominância do tom estridente, o excesso. Se a artificialidade é mais evidente na personagem de Inha, Tita (Izabel Marques) tampouco atua de modo naturalista. Seus gestos são pesados, projetados, fortes. Curiosamente, o excesso tem como efeito uma redução dos traços individuais, com inclinação ao típico. É desconfortável para a plateia, que não sabe se tem, diante de si, uma atuação popular ao estilo circense ou uma “peça teatral séria”. O método é, do começo ao fim, acertado. Encenar o texto de Wehbi a partir de uma concepção naturalista faria com que, por um lado, o texto permanecesse datado, com personagens de baixo potencial de identificação; por outro, ocultaria, sob um discurso pouco verossímil, aquilo que hoje ainda nos diz respeito.

O distanciamento provocado pela atuação da atual montagem obriga o espectador à atenção desconfiada. Fica-se perguntando se aquelas personagens não encenam, elas mesmas, uma vida imaginada. Reforça esse efeito a transmutação gradual da técnica de atuação: conforme as protagonistas se despem, no decorrer da peça, de suas personagens pantomímicas, e apagam os traços de tipo, o peso real da exploração se impõe com um tom amargo que, contudo, não perde traços de humor. O trabalho excelente de Izabel Marques e Priscilla Carbone permitiu que fosse revelado, diante do/a espectador/a, o processo de construção da individualidade daquelas figuras inicialmente tão caricatas. Um processo que culmina na quebra de ilusões, quando as personagens, dando-se conta de sua própria encenação, encontram-se com as atrizes –  agora fora de seus papéis. Gostaria também de mencionar a atuação de Camilo Schaden. Com entradas muito precisas e um cuidadoso trabalho gestual adaptado a cada cena, conseguiu manter sua personagem em oscilação, sem unidade fixa.

A experimentação corajosa da técnica de atuação permitiu que se extraísse o melhor desse texto, escrito no contexto da ditadura por Wehbi, um dramaturgo ligado ao movimento teatral operário – movimento que deixa traços no humor e em elementos textuais decisivos da peça.

Saí da Sala Carlos Miranda ruminando sobre o que a peça ainda nos diz sobre as possibilidades de solidariedade de classe em um momento em que a lógica da competição, em que cada trabalhador se torna um empreendedor de si mesmo, reforça o desejo de isolamento e evasão.

Compartilhar em
Sobre
Gabriela Siqueira Bitencourt

Gabriela Siqueira Bitencourt

Tradutora, doutora na área de literatura comparada (FFLCH-USP), tece aproximações entre a literatura e a cena e realizou recentemente a pesquisa _Da arte à política: a experiência da metrópole nas resenhas teatrais (1921-1924) de Alfred Döblin.

InfTEATRO em números

0 peças no site
0 em cartaz
0 colunas
0 entrevistas

Receba as nossas novidades

Ao se inscrever você concorda com a nossa política de privacidade

Apoios e Parcerias

Inf Busca Peças

Data
Preço

Este website armazena cookies no seu computador. Esses cookies são usados para melhorar sua experiência no site e fornecer serviços personalizados para você, tanto no website, quanto em outras mídias. Para saber mais sobre os cookies que usamos, consulte nossa Política de Privacidade

Não rastrearemos suas informações quando você visitar nosso site, porém, para cumprir suas preferências, precisaremos usar apenas um pequeno cookie, para que você não seja solicitado a tomar essa decisão novamente.