Recentemente, visitei o complexo da Funarte no centro de São Paulo. Fiquei com um sentimento contraditório. Se, por um lado, é bom prestigiar um aparelho cultural público, em pleno funcionamento, é também triste lembrar que os espaços culturais da cidade têm sido mantidos sob constante ameaça do poder municipal – como aconteceu recentemente com o Teatro Vento Forte e, agora, com o Teatro de Contêiner.
O que me levou, num domingo à noite, às ruas do centro foi a peça A dama de copas e o Rei de Cuba, em cartaz na Funarte até o dia 15 de junho. O texto, escrito em 1974 por Timochenco Wehbi (Timó), já rendeu uma bela adaptação para televisão com Consuelo Leandro e Lúcia Mello, gravada em 1976, que aproveitou a inventividade divertida das situações cênicas e a linguagem áspera, zombeteira (e, por vezes, cruel) para pintar a vida das duas protagonistas, Tita e Inha. Forçadas à convivência e a algo próximo da amizade pela necessidade financeira, elas dividem um quarto de pensão em um bairro pobre da São Paulo daquele período. Operária de uma fábrica têxtil e religiosa, Inha vive contrariada com a vida noturna de Tita, aspirante à estrela, cuja carreira frustrada de cantora é limitada às duras noites de cabaré. O instável equilíbrio de seu cotidiano é abalado com a aparição de um misterioso pretendente encomendado por correspondência. Rispidez, desconfiança, desentendimento e solidão aproximam essas duas parceiras improváveis em uma espécie de farsa trágica, retrato engenhoso das condições de vida e sensibilidade de duas trabalhadoras urbanas da década de 1970.
Na montagem da Cia Escandalosa, dirigida por Camilo Schaden, a surpresa reside sobretudo na concepção de atuação. Na pequena plateia (lotada) da sala Carlos Miranda, sentamo-nos diante de um quarto situado no centro do palco, disposto enviesadamente e delimitado por duas paredes cênicas. Em sua aparente simplicidade – as paredes em armação de madeira e pano, com duas portas e uma janela, duas camas, uma pequena mesa, um armário e uma estante –, a estrutura cenográfica produz um efeito de precariedade que situa, socialmente, as duas moradoras da periferia paulista. Além disso, os poucos objetos em cena, aliados ao figurino, marcam a distância temporal: pressentimos que tudo se passa em torno de 1970. Se há alguns elementos, na construção do espaço cênico, que induzem à expectativa de uma encenação naturalista, esta é quebrada imediatamente a partir da entrada de Inha (Priscilla Carbone). Com o rosto coberto por uma densa maquiagem branca, ao estilo de uma máscara cômica, sua técnica de atuação é quase pantomímica em seu gestual exagerado, demonstrativo. A técnica vocal também busca, com a predominância do tom estridente, o excesso. Se a artificialidade é mais evidente na personagem de Inha, Tita (Izabel Marques) tampouco atua de modo naturalista. Seus gestos são pesados, projetados, fortes. Curiosamente, o excesso tem como efeito uma redução dos traços individuais, com inclinação ao típico. É desconfortável para a plateia, que não sabe se tem, diante de si, uma atuação popular ao estilo circense ou uma “peça teatral séria”. O método é, do começo ao fim, acertado. Encenar o texto de Wehbi a partir de uma concepção naturalista faria com que, por um lado, o texto permanecesse datado, com personagens de baixo potencial de identificação; por outro, ocultaria, sob um discurso pouco verossímil, aquilo que hoje ainda nos diz respeito.
O distanciamento provocado pela atuação da atual montagem obriga o espectador à atenção desconfiada. Fica-se perguntando se aquelas personagens não encenam, elas mesmas, uma vida imaginada. Reforça esse efeito a transmutação gradual da técnica de atuação: conforme as protagonistas se despem, no decorrer da peça, de suas personagens pantomímicas, e apagam os traços de tipo, o peso real da exploração se impõe com um tom amargo que, contudo, não perde traços de humor. O trabalho excelente de Izabel Marques e Priscilla Carbone permitiu que fosse revelado, diante do/a espectador/a, o processo de construção da individualidade daquelas figuras inicialmente tão caricatas. Um processo que culmina na quebra de ilusões, quando as personagens, dando-se conta de sua própria encenação, encontram-se com as atrizes – agora fora de seus papéis. Gostaria também de mencionar a atuação de Camilo Schaden. Com entradas muito precisas e um cuidadoso trabalho gestual adaptado a cada cena, conseguiu manter sua personagem em oscilação, sem unidade fixa.
A experimentação corajosa da técnica de atuação permitiu que se extraísse o melhor desse texto, escrito no contexto da ditadura por Wehbi, um dramaturgo ligado ao movimento teatral operário – movimento que deixa traços no humor e em elementos textuais decisivos da peça.
Saí da Sala Carlos Miranda ruminando sobre o que a peça ainda nos diz sobre as possibilidades de solidariedade de classe em um momento em que a lógica da competição, em que cada trabalhador se torna um empreendedor de si mesmo, reforça o desejo de isolamento e evasão.