O centenário de Barbara Heliodora (29/08/1923) sugere não só a lembrança da amiga, de papo inteligente e divertido, mas a falta que faz o pensamento crítico, e não só no teatro. A platitude dos “influenciadores” (?), em busca de likes nas redes sociais, substitui o rigor na observação dos eventos, nas artes ou onde for. São outros tempos, esses digitais, e qualquer comparação com o mundo analógico que agoniza é estéril. Mas vale a pena chamar a atenção, no caso específico do teatro, para o papel da crítica desde, digamos, Machado de Assis até Barbara Heliodora, cuja morte em 2015 fechou esse espaço regular de análise na imprensa. (Refiro-me à tal imprensa escrita, pois até aqui, fora eventuais exceções, o que há nas redes sociais são crônicas dos espetáculos com pitadas de opiniões ligeiras. E as transformações na imprensa são outro tema pra outra ocasião.)
Há 40 anos, então editor de Cultura da revista Visão, convenci Barbara Heliodora, depois de longa conversa, a voltar à crítica teatral. Há tempos ela se dizia aposentada desse ofício e feliz em sua atividade acadêmica, escrevendo, traduzindo e falando de Shakespeare Brasil afora. E feliz por poder frequentar os teatros sem o desconforto dos desacatos de criticados insatisfeitos. “Metade da classe teatral vai te agradecer, metade não vai te perdoar por trazer Barbara de volta”, ouvi do diretor Ademar Guerra, que me apresentou a ela. E assim foi.
Logo Barbara começou a ser assediada por outras publicações, mas ficou na revista nos cinco anos seguintes, enquanto fui editor. Quando sai, ela se sentiu liberada para aceitar o convite do jornal O Globo, onde permaneceria até o fim. Deixei as redações pra voltar pra minha casa, o teatro, e ali como ator comprovei (como se precisasse) a coerência de Barbara. Do aplauso (isto é que é teatro, escreveu sobre “Copenhagen”, em 2001) à indiferença ao espetáculo seguinte (“não vale a pena gastar tinta com ele”, me disse lacônica). Amigos, amigos. Teatro à parte.
Por conta de uma crítica mais severa, amizades antigas deixaram de falar com Barbara. Entristecida, me disse de um amigo de mais de 50 anos que, de repente, virou o rosto e deixou de lhe dirigir a palavra porque ela não gostou de um espetáculo que nem era dele, mas de alguém com quem estava casado. Episódios assim a machucavam. Os demais colocava como ônus do seu trabalho.
E embora O Globo a acolhesse bem, e agora no seu centenário em agosto lhe rendesse todas as homenagens, Barbara não escapou de um editor que criava problemas para publicar suas críticas, deixadas mofando na gaveta. “Eu entendo, ele agora resolveu escrever peças de teatro…”, ela se limitou a dizer, deixando o resto por conta do bom entendedor.
Felizmente há muitos registros, incluindo vídeos no YouTube, para quem quer saber de Barbara Heliodora. Só o futebol e o Fluminense concorriam com sua paixão pelo teatro, em especial por Shakespeare. Dos seus muitos livros destaco dois: “Reflexões shakespearianas” (Lacerda Editores, 2004), leitura deliciosa pra quem quer se aproximar do Bardo e do seu tempo, e “Escritos sobre teatro” (Perspectiva, 2007), um catatau de quase mil páginas, reunindo textos de Barbara desde 1944.
Divirtam-se. Mesmo.
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