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Foto: Sergio Santos Miranda
Foto: Sergio Santos Miranda

Cia. De Feitos pratica mais uma ousadia em forma de “teatro para todas as idades”

Com ‘A Grande Questão’, sua quinta peça infantojuvenil, grupo paulistano confirma vocação para perseguir o simbólico, o poético e o inusitado, sem preocupações aristotélicas em sua dramaturgia nada linear

Crítica Por Dib Carneiro Neto

A Cia. De Feitos nasceu em 2009, decorrente de um encontro de artistas (realizado em junho de 2008) envolvidos em um projeto de outro grupo, Les Commediens Tropicales (LCT), do qual o ator, diretor e dramaturgo Carlos Canhameiro já fazia parte. Quando o projeto terminou, eles se deram conta de que alguns de seus integrantes tinham em comum as experiências com educação infantil.  Juntaram-se, então, em torno de uma proposta que Canhameiro jogou na roda, o livro O Pato, a Morte e a Tulipa, de Wolf Erlbruch. Vi O Pato só em 2011, depois Selma em 2013, Achados & Perdidos em 2015 e Inimigos em 2017. Que profissionais de voos criativos insuspeitados!

Como público de teatro e, depois, como crítico desse segmento de peças para crianças e jovens , tudo o que eu mais prezei na vida foi esse tipo de pensamento livre sobre a arte – essa visão do teatro como experiência múltipla, desconcertante e etérea, liberada de amarras, alucinante como um sonho fragmentado. Algo que nos faça perder o chão e duvidar de parâmetros estabelecidos. Não entendeu tudo de forma organizada e programática? E daí? Teatro não é aula.

Sempre valorizei mais em minhas críticas os espetáculos que traduziam no palco essa forma aberta de se pensar a educação de uma criança, e a mente de uma criança. E escrevi várias vezes: oferecendo liberdade em forma de arte é que se consegue formar pensadores, estimular reflexões, derrubar conformismos e transmitir a noção fundamental de que não há limites para se viver com intensidade. Quanto menos passível for a criança de ser manipulada e domesticada, mais saudável ela será sempre, durante toda a sua vida. Eis aí a chave para tamanha atração que sinto pela dramaturgia de Carlos Canhameiro e a Cia De Feitos.

Eis que chega, neste segundo semestre de 2023, o quinto espetáculo do grupo, em cartaz no Sesc Belenzinho, em São Paulo. A Grande Questão (quase) não tem palavras, a não ser nas letras das músicas. E que músicas! Como elas engordam de recheio a dramaturgia do espetáculo! Sempre ao vivo, elas são um ponto forte em todas as montagens da companhia, incluindo os incríveis efeitos de sonoplastia. Aqui, não seria diferente. Um verso de uma das canções da peça diz “Você está aqui”, como nos mapas de localização, e pronto: está sugerida a materialidade. A espacialidade. A criança e seu lugar exato no mundo. Outra letra fala em semente, na esperança de um jardim, e pronto: reforça-se a ideia do tempo, que permeia todo o espetáculo. Ao final, outro verso confirma: “Tenha a coragem de ser paciente.” E o recado está posto. Tudo assim tão bem integrado: música e encenação, poesia e concretude, verso e ação.

Tenha a coragem de ser paciente. Esse convite, na última canção de A Grande Questão, deveria ser o hino oficial da Cia. De Feitos, algo como sua declaração de intenções, sua carta-manifesto. A geração atual, por conta do ritmo frenético, impregnado em nossas vidas pelas tais redes sociais, não tem essa paciência que o verso pede.  E o teatro – além de contar boas histórias, abrigar incríveis adaptações de livros, perpetuar fábulas ao longo dos séculos – deve ser também espaço de resistência e oferecer outras vias de expressão, outras linguagens, sem pressa, sem obrigação de ter começo, meio e fim. Os adultos serão igualmente provocados por isso. Porque precisam entender que teatro infantojuvenil não precisa ser apenas linear e facilmente decifrável – ele pode mexer com a lógica, pode brincar com o ritmo, pode dizer nas entrelinhas. Sair do teatro cheia de dúvidas será saudável e desafiador para uma criança, tanto quanto assistir a boas peças de narrativa mais tradicional.

Lembrei do que Canhameiro me disse em entrevista certa vez: “A dramaturgia da cena é mais importante para nós do que a dramaturgia escrita (a fábula, a narrativa etc.)” Essa sua frase define o novo espetáculo, A Grande Questão.  Define e sintetiza, alinhava, resume, descreve, explica, prepara. O que vemos do começo ao fim é um festival de cenas, aparentemente desconexas, mas muito bem pensadas e realizadas, sobretudo plasticamente. A contundência está na beleza e na fluência com que cada cena se desenrola no palco, como um quebra-cabeças falsamente insolúvel, que se revelará pleno de sentidos ao final. Será? E é preciso mesmo que todo final seja explicativo e conclusivo? Finais abertos para miolos enigmáticos – por que não oferecer isso às crianças e introduzi-las a esse mundão de possibilidades abertas que configura a arte teatral? Não será assim a vida que ela terá pela frente? Às vezes com tudo explicadinho e caminhando nos trilhos, outras um punhado de cenas inconclusivas, descontínuas, pura vertigem e falta de sentido… Vida.

Tudo o que vemos nos 55 minutos de duração da peça parece ser um preparativo para a gravação de uma única cena de entrevista ou talk show, talvez. Os bastidores, os ensaios, os arroubos da produção. O backstage de uma possível grande entrevista que nunca se realizará, porque a peça vai terminar antes. Algo similar ao esforço continuado de Sísifo, subindo e descendo com a mesma pedra pesada nas costas. Assim é A Grande Questão – uma peça-exercício, em que cenas curtas se amontoam e se repetem, enquanto o tempo passa. E você vê o tempo. Eu vi. O talento do grupo para a ‘arrumação’ dessas cenas faz a plateia enxergar, tijolo por tijolo, um tempo concreto, erigido no palco feito rei que está nu. Põe cadeira, tira cadeira, e passa gritando a diretora de produção, e traz mesinha com flor, essa não!, muda a flor, agora tira a mesa, e grita de novo a produtora, e põe mais luz, tira a luz, enche de música, desliga o som, ajeita o microfone,  faltam cinco minutos!, infla o tapete, voa o tapete, conserta o cenário, varre o chão, molha o chão, enxuga o chão com secador de cabelo… E, do nada, passa um escafandrista recitando Shakespeare… Essa nossa vã filosofia… E, do nada, entra um ator carregando um urso de pelúcia tamanho gigante… Quem precisa de explicações diante de tanta provocação estética? Deixe suas crianças se intrigarem o quanto for. Não lhes será um belo treino para enfrentar o que a vida tem de intangível?

As ações vão se acumulando e se repetindo, por que não? Quer forma melhor de encenar a cadência de uma passagem de tempo se não for pela repetição? Faz, refaz, faz de novo, repete – é o tempo sendo segurado nas mãos pelo elenco, como se fosse materializado. O tempo como uma massa sendo pacientemente assada no forno, desde que se ouve o terceiro sinal. E, ao final, o elenco mastiga de verdade esse tempo, digo, a massa pronta, E, antes, cantam parabéns três vezes, para personagens diferentes. O que é isso senão a ideia de um dia após o outro? Tempo, tempo, tempo, tempo, és um senhor tão bonito quanto… uma peça da Cia. De Feitos.

Já que mencionei a plasticidade da montagem, nunca descuidada nas peças desse grupo, quero deixar registrados aqui dois momentos de A Grande Questão que eu chamaria de “a eloquência da beleza”, dois exemplos fortes, mas simples, da poética visual perseguida na linguagem do espetáculo: 1) uma esfera é levantada ao alto e imediatamente os atores se põem a uivar: qual criança não vai entender que lua cheia lembra lobos e lobisomens? 2) um algodão doce, espetado no palito, é molhado, até se encharcar completamente: quem não entende que é a representação da chuva, com a nuvem se desfazendo em temporal?  São dois exemplos do teatro sendo praticado em sua essência mais sintética. Representações da vida feitas com a singeleza de elementos corriqueiros. Só o teatro é capaz disso. As crianças, definitivamente, não precisam de peças com começo, meio e fim. Elas precisam de bom teatro, que as desafie com esse tipo de metáfora tão cativante.

Mas sabe mesmo o que é melhor numa peça da Cia. De Feitos? O melhor é que ela pode não ser nada disso que eu tentei descrever aqui, com a empáfia de um escrevinhador veterano. Provavelmente não seja mesmo. Nada. Por isso que é boa. Porque para você, ela será outra coisa. Quando você adentrar pela porta do teatro e o padeiro já estiver ali preparando a massa, nada, nada, nada, nada… do que se pensava encontrar.

Depois me conte.

Nota: As informações e opiniões contidas neste artigo são de inteira responsabilidade de seu/sua autor(a), cujo texto não reflete, necessariamente, a opinião do INFOTEATRO.

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Dib Carneiro Neto

Dib Carneiro Neto

Jornalista, dramaturgo e crítico teatral. Começou a escrever críticas sobre teatro infantil em 1990, na revista Veja São Paulo. Foi editor-chefe do caderno de cultura do jornal O Estado de S. Paulo (2003 a 2011). Atualmente, edita o site e canal do youtube Pecinha É a Vovozinha, que ganhou o Prêmio Governador do Estado em 2018, na categoria Artes para Crianças, além de menção honrosa no Prêmio Cbtij. Por sua peça Salmo 91, ganhou o Prêmio Shell de dramaturgo em 2008. Em 2018, ganhou o Jabuti pelo livro Imaginai! O Teatro de Gabriel Villela.

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