As mulheres criadas pelo dramaturgo norueguês Henrik Ibsen (1828-1906) no final do século 19 falam tanto ou mais sobre a condição feminina que as personagens desenvolvidas no teatro contemporâneo. Quer dizer, vamos ser diretos, elas falam mais e, quase sempre, melhor, pelo menos como essência dramatúrgica. Quem assiste ao espetáculo Hedda Gabler, realização da companhia Círculo de Atores dirigida por Clara Carvalho, em cartaz no Grande Auditório do Masp, pode nem saber ou se dar conta de que o texto foi escrito em 1890 e tudo bem. Isto é o que menos importa.
Ninguém na produção faz o menor esforço para ressaltar a atualidade da história por uma simples razão, ela continua contemporânea. O registro das interpretações é moderno, o cenário construído por Chris Aizner remete a muitas casas de uma classe média alta vistas por aí e os figurinos, assinados por Marichilene Artisevskis, salvo um detalhe ou outro, poderiam ser usados nas ruas por pessoas comuns. Boa parte da obra de Ibsen conserva o mesmo frescor – e temos tido ótimos exemplos recentes.
Entre maio e junho, o diretor José Fernando Peixoto de Azevedo encenou Depois do Ensaio, Nora, Persona, que, entre suas histórias, mostrava Casa de Bonecas (1879), o clássico que antecipou o feminismo no teatro ao enfocar a burguesa insatisfeita, Nora, que larga a família para assumir a própria vida. Em 2022, o próprio Azevedo levou ao palco outro Ibsen, Um Inimigo do Povo (1882), montagem revigorada que fez com que o texto parecesse ter sido escrito há bem menos tempo.
Além de Nora, ávida pela emancipação, Ibsen idealizou Élida Wangel, de A Dama do Mar (1888), que, diante de uma possível liberdade, escolhe a resignação, e Hilda Wangel, de Solness, o Construtor (1892), a jovem que incentiva o velho arquiteto a testar os seus limites. A própria Clara Carvalho, que esteve no elenco de Um Inimigo do Povo, interpretou em 2011 a ambígua Helen Alving, de Espectros (1881), em montagem de Francisco Medeiros (1948-2019). A personagem, depois de tolerar por décadas a subordinação imposta pelo casamento, fica viúva e não renuncia aos poderes conquistados.
Mas o assunto aqui é Hedda Gabler e nenhuma delas é tão enigmática, perturbada e intrigante – ou, talvez, não seja nada disto, dada às condições de uma mulher oprimida de sua época, quando, a maioria, nada mais tinha a fazer, além de suportar a vida como ela era. Sob este ponto de vista, as ações e o comportamento da personagem-título são bem lógicos. Ela vivia infeliz, condicionada a uma série de fatores que a desagradava e não enxergava saída.
A interrogação que se faz mais de um século depois, ao atestar a tal contemporaneidade de Ibsen, é a razão pela qual a peça ainda pode representar um espelho tão poderoso para as mulheres de hoje, mas, a partir daí, saímos do teatro e podemos cair no terreno da psicanálise, o que não é o caso.
No palco do Masp, Hedda é a atriz Karen Coelho, que, com seu tipo delicado e elegante, colabora para uma aparente doçura, aos olhos alheios, que dissimula o turbilhão interno da personagem. Hedda acaba de voltar de uma longa lua-de-mel e percebe que não vai suportar a vida que julga medíocre, relacionada ao casamento com Jorge Tesman (interpretado por Guilherme Gorski). “O que achei mais insuportável foi ficar seis meses ao lado daquela mesma pessoa”, diz ela, antes mesmo de desfazer as malas.
Tesman é um sujeito sensível, doutor em ciências humanas, apegado aos livros, à vida acadêmica e à família, especialmente à Tia Juliana (papel de Chris Couto, em participação curta, mas marcante). “Hedda tinha tantos admiradores e escolheu você”, ressalta Juliana, diante da notória insegurança do rapaz, que ficou órfão cedo e se sente protegido por aqueles que restaram da sua família. Se Tesman, mesmo especializado em humanismo, não penetra o mistério que representa sua mulher, escolhe, então, uma passividade que a irrita mais ainda. “Por que eu me casei? Tinha chegado a hora, me sentia velha”, dispara ela, em sua verborragia agressiva.
Hedda era a filha única de um militar que lhe deixou de herança um piano e algumas armas de fogo. Mesmo assim, é uma privilegiada, nunca batalhou pela vida, não encontrou uma vocação ou encarou uma experiência transformadora. “Só tenho vocação para uma coisa; morrer de tédio”, diz. Perto dela, uma outra mulher, Thea Elvsted (vivida por Mariana Leme, em presença firme), mais próxima das outras criaturas de Ibsen, largou o marido. A própria Hedda é assediada insistentemente pelo juiz Brack (papel de Sergio Mastropasqua), que, de caráter dúbio, lhe propõe um triângulo amoroso, mas ela rejeita cair no adultério e reafirma a personalidade convencional. “Eu prefiro ficar sentada no meu vagão, com um parceiro confiável”, justifica, contraditória.
Figura capaz de atordoar a quase todos, Eilert Lovborg (representado por Carlos de Niggro) é um intelectual adepto da vida mundana, alvo fácil para os vícios e, por tudo isso, o contraponto do estável Tesman. Ao redor dele, orbitam Thea, Brack, Tesman e não tarda para Hedda se aproximar, seja ao incentivá-lo a beber o drinque recusado ou tentar dar um fim a uma de suas obras de forma leviana.
Em meio a estes personagens, Berta (a atriz e cantora Nábia Villela) é a criada do casal protagonista, figura sinistra que transita pelo ambiente, faz crochê em seu repouso na coxia e canta, lindamente. O canto, aliás, está associado à trilha sonora composta e executada ao vivo por Gregory Silver, que, através de piano, teclado e violoncelo, entre outros instrumentos, amplifica o diálogo atemporal da montagem em uma conjugação que não soa excessiva.
Atriz de grande relevância na cena paulistana há quase quatro décadas, dentro e fora do Grupo Tapa, Clara Carvalho tem desenvolvido um caminho de encenadora com uma ênfase no feminismo em seus últimos trabalhos. Tudo é feito de maneira sutil, longe dos discursos panfletários tão comuns e apoiados nos textos clássicos que eliminam a exacerbação que pode, mesmo em tom baixo, parecer gritaria.
Em 2022, Clara dirigiu Escola de Mulheres, comédia de Molière (1622-1673), ressaltando o viés contestatório de Inês (a atriz Gabriela Westphal), a adolescente prometida ao solteirão Arnolfo (o ator Brian Penido Ross), e, no ano passado, junto ao Círculo de Atores, levou ao palco O Dilema do Médico, de Bernard Shaw (1856-1950). Mesmo em uma trama dominada por homens, saltou aos olhos do público o empoderamento dado para a bela e assertiva Jennifer (a atriz Bruna Guerin), que, podia não parecer à primeira vista, mas ali comandava o seu caminho e até dos personagens masculinos a sua volta.
Sob o olhar sensível e experiente de Clara, a personagem Hedda Gabler tem, sim, os seus muitos defeitos ressaltados. A diretora não doura a pílula e deixa claro que questões bem mais sérias atravessam a cabeça desta mulher mimada e arrogante que não só a sua angústia. Os seus pontos fracos são sublinhados, um tanto de maldade também, assim como a frivolidade e a irresponsabilidade. E isso tudo só se torna possível de ser dito nos dias de hoje porque Clara Carvalho é uma mulher e, mesmo que a diretora tenha aberto mão da sororidade, como muitas jamais fariam, ela, atriz respeitada e inteligente, deverá ser respeitada por tal opção.
Assim como em O Dilema do Médico, outro ponto chama a atenção em Hedda Gabler e parece ser responsabilidade da diretora: a afinação do numeroso elenco. Karen Coelho tinha um grande papel em mãos, sem dúvida. A atriz carioca, de 39 anos, acumula passagens significativas pelos palcos de São Paulo, como em O Zoológico de Vidro (2009) e O Camareiro (2015), ambas dirigidas por Ulysses Cruz, e A Profissão da Sra. Warren (2018), comandada por Marco Antônio Pâmio, em que contracenou com Clara na pele de sua filha. Karen constrói Hedda com economia, fala através dos olhos, pouco varia o tom de voz e confere uma instabilidade emocional para a personagem que tanto despertar raiva como pena.
Guilherme Gorski é um ator que, junto às montagens do Círculo de Atores, aos poucos, retoma uma trilha prometida no final da década de 2000, principalmente no monólogo Entulho (2008). Participou de O Homem do Destino (2016), A Milionária (2018) e Macbeth em Cordel ou A Peça do Inominável (2023). Assim como Karen, ele tira proveito do tipo físico, identificável ao de um galã e próprio para Tesman, mas aprofunda a inadequação do personagem a uma exigida postura exacerbadamente masculina, como era cobrada na época de Ibsen e, digamos, não muito até hoje.
Surpreendente é o trabalho de Carlos de Niggro, capaz de explicitar a flutuação no vazio de Eilert Lovborg em um papel relevante que poderia se apagar nas mãos de um intérprete menos hábil. O contrário fica por conta do juiz Brack de Sergio Mastropasqua, cuja racionalidade e carismática presença sempre fortalece as cenas. Aqui, mais uma vez, o ator se destaca como o antagonista de Hedda, afinal, é o único que sabe desafiá-la.
Sob a direção de Clara Carvalho, Hedda Gabler é uma encenação notável, exemplo de teatro de grande qualidade e pronto para agradar espectadores de diferentes níveis de exigência e compreensão. O clássico está ali, mais atual que nunca, mas principalmente muito bem interpretado e compreendido por quem o realiza, sem que precise ser alterado para se adaptar às importantes mensagens que devem ser transmitidas neste momento.
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