Quando penso em teatro musical, a primeira qualidade que me vem à cabeça é o profissionalismo. Gênero característico por cenários exuberantes e grandes produções, os musicais se caracterizam, principalmente, por atores capazes de cantar, dançar e interpretar – com igual propriedade. Ao conversar com Claudia Raia, ficou nítido que a qualidade de seus trabalhos nessa seara é resultado de muita disciplina.
A atriz está em cartaz, junto com o ator Jarbas Homem de Mello, com o espetáculo Conserto para Dois, o Musical, peça criada e produzida por ela. Os atores deleitam o público ao darem vida a 12 personagens distintas. Trata-se da estória de amor e obsessão do famoso escritor de best-seller Ângelo Rinaldi (Jarbas) com a diva de cinema e celebridade internacional Luna de Palme (Claudia). Mas, atenção! A temporada, em São Paulo, vai até 13 de março. Não há tempo a perder.
Saiba tudo o que conversamos a esse respeito:
Como está sendo voltar aos palcos neste momento?
Claudia Raia: É muito emocionante… É quase um reaprender o que, de fato, é importante para nós; o que é bálsamo para nossos ouvidos, como os aplausos, por exemplo. A gente vive disso, desse lindo som, que é o aplauso do reconhecimento. E, principalmente, de ver as carinhas dos espectadores sorrindo, agora, por trás das máscaras. Costumo dizer que uma das funções do artista é ser médico da alma: o público chega ao teatro de um jeito e sai de lá completamente transformado. Nós sempre fazemos uma rodinha, com toda a equipe, antes de entrarmos em cena, e falamos justamente isso: “Que tenhamos força nas pernas para dançar, voz para cantar, humildade e merecimento para exercermos esse lugar tão importante e único, que é levar entretenimento e alegria para o coração de cada uma dessas pessoas.” Essa é a missão, nosso propósito. E, depois de tanto tempo enclausurados, o público chega até uma hora antes da peça começar.
As pessoas querem estar no teatro! Eles aplaudem e riem de um jeito… as pessoas entenderam – embora muita gente não ache isso, inclusive o nosso governo – foi a arte e a cultura que salvou a todos nesse período. Esse foi um aprendizado muito valioso. Quantas e quantas vezes a cultura já foi diminuída, proibida, aprisionada… e a gente dá a volta por cima e a própria arte passa a ser um ato político. Nós não precisamos falar mais nada, falamos com nosso trabalho. “Tocar” o ser humano não é algo que se possa manipular, não tem como fingir; é ou não é. A arte, fundamentalmente, toca as pessoas.
E como é fazer Conserto para Dois, o Musical?
Nesse espetáculo a gente fica muito feliz – além de toda a emoção que é estar de volta aos palcos –, pois vemos como uma boa história entretém. E fazer isso com um espetáculo que nós mesmos criamos, cem por cento brasileiro, junto com a Anna Toledo – que é uma bela autora – e com mais três compositores, criando a nossa forma de fazer musical… O musical, em si, é uma estrutura que não é nossa; é americana, inglesa. Nada contra os conteúdos americanos, muito pelo contrário, que produzi muitos conteúdos e vai continuar produzindo, porque são maravilhosos. É a mesma coisa que dizer: “não faço mais Shakespeare, só Nelson Rodrigues”; não… é uma coisa única. E aprender esses caminhos com os musicais estrangeiros, é maravilhoso. Os musicais têm várias particularidades, e uma delas – que gosto muito – é o eleven o’clock number, que acontece antes do final, quando já está chegando perto das onze horas da noite e o público está cansado.
Então, acontece um super número para podermos preparar o espetáculo para o grand finale. Há toda uma estrutura que precisa ser respeitada. E nós tentamos encontrar a forma, brasileira, de fazer isso. Me dá muita alegria que Conserto para Dois funcione tanto. A questão de mudar de personagem tão rápido – não só de figurino, mas de caráter, corpo, voz – é um grande exercício para nós, atores. Agradeço muito a Deus por poder estar em cena fazendo este tipo de coisa. Porque na grande maioria dos musicais – tirando os grandes como Chaplin, O Fantasma da Ópera, Sweet Charity, que têm personagens com uma curva dramática espetacular – é difícil você encontrar personagens que sejam mais elaborados, profundos. Mas, neste espetáculo conseguimos fazer um trabalho elaborado, pois a dramaturgia foi feita para isso, o que também nos traz diversas dificuldades, como, a cada dia que entramos em cena, manter esses personagens absolutamente vivos, sempre precisos – este espetáculo vive da precisão, da disciplina. É uma loucura.
Qual é a sua rotina de trabalho para fazer este espetáculo?
É muito disciplinar mesmo. Na verdade, tive uma mãe taurina, maestrina, professora de dança, que me ensinou que não tem outro jeito que não seja trabalhar, trabalhar e trabalhar. Se alguém consegue fazer isso com mais facilidade, parabéns, mas não consigo. É muito trabalho mesmo; é fazer aula de balé, canto, correr na esteira para conseguir ter fôlego. Treinos de aeróbico cantando – o pessoal da academia fica inclusive olhando, mas a gente continua. Isso foi uma coisa que desenvolvi lá em 1991, quando comecei a fazer musical, pois entendi que dançar e cantar exigem duas respirações completamente diferentes. E que ofegar é uma coisa muito desagradável, o público precisa achar que você faz aquilo fácil, pois do contrário não tem graça.
Assim, precisamos encontrar uma maneira de nos condicionarmos e fazer as duas coisas ao mesmo tempo. Durante a semana faço muitas coisas, não só como atriz; produzo também. Mas, no meio de tudo isso, tenho os meus horários de aula, de manutenção da técnica, de manutenção do fôlego, e quando chego no teatro é um momento de concentração absoluta para dar conta de fazer a peça. O público percebe a dificuldade que é fazer este espetáculo e aplaude a nossa entrega, o que é muito bonito.
Qual a importância do teatro musical para o circuito teatral brasileiro?
Sou da época em que ninguém acreditava em musical. Até o Boni, que era meu oráculo, falou: “Claudia, não faz musical. É uma coisa americana, não funciona aqui no Brasil.” E eu dizia: “Gente, se o Boni está falando isso… o que vai ser de mim…”. O que eu sentia é que a gente já fazia musical todo ano. Se você for pensar, o Carnaval é uma opereta. É uma estória cantada, com cenários e figurinos espetaculosos. O musical é super fantástico, e o carnaval é super fantástico também. Fico até arrepiada de falar isso… A diferença é que no carnaval o espetáculo, a cada escola, passa uma única vez na avenida, e a gente passa três vezes por semana. Como estrutura, o brasileiro está acostumado a essas apresentações grandiosas, com estórias cantadas, sambas cantados, todos cantando juntos. Então, eu pensava: “Como é que isso não funciona aqui? Se é um país totalmente musical, rítmico… não é possível que isso não dê certo no Brasil.”. Todo mundo foi contra, mas eu estava certa. Porque podemos dizer que, hoje, é um dos únicos gêneros estabelecidos efetivamente no Brasil.
Hoje, as casas lotadas, estão nas mãos do teatro musical. E, além disso, é um mercado de trabalho efetivo! É possível colocar dez, doze musicais em cartaz ao mesmo tempo; há equipe para isso, elenco, músicos. Realmente foi formado este mercado. E acho que colaborei muito para isso, porque acreditei muito nesta possibilidade, assim como Miguel Falabella, Marília Pêra, Bibi Ferreira. Foram pessoas que lutaram pelo teatro musical. E aí está o gênero, de incontestável sucesso. Mas há um preconceito da classe. É a mesma coisa que acontece com a televisão: acham que é um veículo menor, mais fácil. E não é; é muito difícil fazer aquilo. Como também é muito difícil fazer teatro musical. Costumo dizer que é o gênero dos três cérebros: tem que ter um cérebro para cantar, outro para dançar e outro para interpretar. Parece que um não conecta com o outro, são coisas diferentes. E é uma habilidade que você pode até desenvolver, mas precisa ser inata.
Quais são suas expectativas para essa turnê e que spoilers você pode dar sobre trabalhos futuros?
A expectativa da turnê é uma delícia, porque a gente não estreou no eixo Rio/São Paulo, mas em Uberlândia. Queria estrear em algum lugar que tivesse ido poucas vezes com teatro. Depois fizemos mais quatro cidades e fomos para Portugal. A maior temporada que nós tínhamos feito, até a pandemia acontecer, foi em Portugal. Portanto, estávamos com o som do público português na cabeça, que é um público europeu, peculiar, mais contido. Eles aplaudem durante cinco minutos e você não sabe nem como agir. Mas foi maravilhoso e, quando chegamos aqui, pandemia…
Agora retomamos depois de dois anos, com o público paulista, que é muito sofisticado. Em São Paulo o público tem amado, fiquei, inclusive, chocada com isso, pois nunca imaginei que seria esse o tipo de reação. Cada público é um público, por isso adoro fazer turnê. Cada região do país é um Brasil diferente que descubro, reações diferentes, o público entende a estória de formas diferentes. São culturas diversas. Vamos percorrer o Brasil e estou louca para ver como cada público irá reagir. Vamos terminar no final de maio.
Depois devo fazer um filme em parceria com a Globo filmes, que estarei como atriz e espero, também, como produtora – seria minha primeira produção no cinema. É um filme musical. E, depois, tem um outro musical, cem por cento brasileiro também, pelo qual tenho muito carinho, sobre a vida e obra de Tarsila do Amaral, dirigido pelo grande José Possi Neto. Será um grande hino à cultura, 100 anos depois da semana de arte moderna. A Tarsilinha, sobrinha neta de Tarsila, que cuida de tudo dela, disse que só faria se fosse comigo… Ela me ligou perguntando se eu tinha interesse em criar um espetáculo sobre Tarsila; quase cai da cadeira. Se tudo der certo, estrearemos em novembro.
O que é ser uma atriz de sucesso?
Não sei responder o que é ser uma atriz de sucesso; sei responder o que é ser uma atriz. Porque o sucesso é apenas uma consequência, hora você tem, hora você não tem. Se uma principiante me pergunta isso, eu digo: “não confie no sucesso, ele não é confiável”. O sucesso é apenas um reflexo de tudo o que você trabalhou. Só que, às vezes, você trabalhou muito, juntou pessoas, e não deu certo. A questão é que não há uma fórmula certa, como uma receita de bolo, que você pega este tipo de ator, este tipo de diretor e autor… não.
É uma receita feita a muitas mãos e no momento certo. As pessoas têm que querer ouvir sobre aquilo naquele exato momento. São muitos ingredientes dos quais você não tem controle. Por isso, não penso no sucesso. Me lembro, uma vez, eu era jovenzinha – fiz sucesso muito cedo – morava em frente a uma banca de revista. Fotografava muito na época. Uma vez fui fazer uma fotobiografia e contei 600 capas de revista, em 30 anos de carreira. Mas voltando, um dia estava descendo com a minha mãe a escadinha do nosso prédio, e eu era capa de todas as revistas da banca. Então, falei: “Gente, olha eu em todas as revistas!”. Mas minha mãe falou: “Pois é, não é isso que fará a sua carreira ser duradoura. É o trabalho, vamos embora, trabalhar, porque, isso aí, passa.”. Foi assim que fui criada, para o trabalho.
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Ao final da nossa conversa, Claudia ainda disse: “Fico tão feliz que a gente possa fazer uma entrevista falando de teatro, isso é tão raro hoje em dia… Muito obrigada!”
Conserto para Dois, o Musical: Teatro Procópio Ferreira – Rua Augusta, 2.823 – Cerqueira César – SP.
Este texto foi, originalmente, publicado no site da revista Vogue Brasil, dentro do segmento ‘Gente’. Para acessar a publicação original, clique aqui.