Costumo implicar muito com peças para crianças pautadas por intenções didáticas e educativas, porque na esmagadora maioria das vezes seus realizadores ainda “pregam” lições e ensinamentos em tons paternalistas, professorais, verborrágicos, rançosos, deixando tudo muito chato, parecendo aula. Teatro não é sala de aula – talvez seja a frase que mais eu tenha escrito em mais de 30 anos de prática de crítica teatral.
Em Trilha para as Estrelas, grátis, em cartaz na minúscula e aconchegante Sala Vermelha, no terceiro andar do Itaú Cultural, o tema são os cuidados com o meio ambiente, hoje um assunto deveras frequente nos espetáculos de horário diurno. Pelo que depreendi das entrevistas que fiz, todas as pessoas envolvidas de forma direta na criação desse espetáculo saudavelmente deram seus ‘pitacos’ no texto e no jeito de abordar aspectos ligados à preservação da natureza. A produção é de Eloisa Elena e seu grupo Barracão Cultural, a direção é de Thaís Medeiros, as canções são de Morris e o elenco é formado pelas atrizes Arami Arguello, Lilian Regina e Vicka Matos. Todos contribuíram, mas houve uma proposta de dramaturgia (ou dramaturgismo, como está na ficha técnica) consolidada ao final por Amanda Carneiro.
O que eu defendo com relação às mensagens construtivas que se quer transmitir no teatro infantojuvenil é que elas venham na forma poética, simbólica, metafórica e na construção de ações ilustrativas, mais do que em palavras vomitadas com toda boa intenção do mundo. Trilha para as Estrelas me deixou de queixo caído, porque parece ter sido criada para provar essa minha tese. Tudo o que se quer dizer sobre natureza e meio ambiente surge primeiro na forma concreta de um acontecimento, uma ação, só depois é traduzido em lição. Fica tão leve, tão gostoso de assistir, tão inteligente. Vou enumerar alguns casos para que fique bem claro o quanto o espetáculo é feliz nessa tarefa de transmitir sem aborrecer.
- A natureza está aí, é só deixar que ela aconteça. Para transmitir isso, as atrizes dão o exemplo de um pontinho verde no meio de um muro, ou seja, uma plantinha que – do nada – brota em uma rachadura de parede, na paisagem inóspita da cidade.
- A natureza resiste e sobrevive, apesar do homem e da cidade. Para falar disso, as personagens relatam que estavam um dia num vagão lotado de metrô e ali apareceu um grilo. Presença improvável. Sinal da natureza em meio à dureza do cotidiano dos citadinos afobados.
- A natureza é espontânea, não há como controlá-la. Essa frase surge só depois que a menina fotógrafa tenta um tempão fotografar um grilo na floresta, mas, na hora do clique, ele voa e foge.
- A solução está o tempo inteiro na natureza. Usar repelente comprado em farmácia é o exemplo que elas dão. Na natureza existem plantas, como citronela e andiroba, que fazem essa função de repelir os insetos. Não é preciso ir à farmácia.
Assim, a história de três jovens amigas que partem numa trilha pela floresta vai sendo contada aos poucos, com muita inteligência cênica e um fluxo narrativo que nunca nos chateia. Além do acerto nesse jeito de ilustrar as mensagens, em vez de despejá-las na plateia, há outros recursos narrativos usados com bastante talento e precisão.
A música. Canções de Morris complementam a ação e são usadas com graça e humor. Por exemplo, há uma deliciosa canção que fala das listas de itens a se levar quando se vai fazer uma trilha pela natureza. Toda vez que as meninas não encontram alguma coisa de que precisam, a canção volta – até que lá pela terceira vez, quando a plateia já está morrendo de rir dessa repetição, uma delas interrompe a canção. Isso é tão funcional, tão marcante, e ilustra mais uma mensagem da peça: Será que precisamos levar tanta coisa assim? Consumir tanta coisa assim? Comprar e desperdiçar tanta coisa assim? Um exemplo magnífico de como uma canção ajuda no ritmo da história, da trama. Comente-se, a propósito da trilha sonora, o quanto a sonoplastia é bem empregada (sons de grilo, de onça, de chuva) e o quanto Morris arrasou nos reggaes desta vez.
Jogo de adivinhação. Uma das três meninas adora lançar motes cifrados, feito charadas, para que as outras descubram do que ela está falando. Outro recurso dramatúrgico que usa uma brincadeira para seguir contando a história, e nunca deixar que a narrativa perca o ritmo. Brilhante! Tão simples e tão brilhante.
Memórias de infância. Quebra da quarta parede para contar fatos relativos à infância de cada uma das três personagens. Esse recurso é tão perspicaz quanto funcional. Muito bom. Interrompem a trama principal e se dirigem diretamente à plateia. As crianças se sentem incluídas, se sentem amigas das personagens.
Convite à interação. “O que vocês acham disso? Posso tirar uma foto sua também? Fechem os olhos agora, todo mundo junto. Estão vendo as estrelas? Qual é o mundo dos seus sonhos?” Esse recurso do teatro interativo, da conversa com o público, de dar espaço para que a plateia se manifeste, é usado com comedimento e muito bom gosto. Outra vez é artimanha para empurrar o plot para frente, artifício para fazer a narrativa avançar.
Trilha para as Estrelas é tudo isso. Simples, potente, delicioso – mesmo falando de um assunto tão explorado. As três atrizes – muito bem dirigidas – nos encantam do começo ao fim, com muito jogo de cintura, vozes marcantes, presenças iluminadas, debochadas na medida certa, irônicas quando é preciso, carismáticas, sapecas, marotas, também um pouco maternais umas com as outras – e livres, sobretudo livres. Em suma, um trio harmonioso que nos transmite alegria e fé na vida, esperança num mundo melhor. Você, como eu, também vai reparar logo de cara no sorriso convidativo que elas têm e que carregam no rosto pela peça toda. Com belos figurinos jovens, de peças sobrepostas, além de mochilas e bonés (tudo sustentável, aproveitando itens de aterros sanitários, como velhos tecidos de guarda-chuvas), elas são três aventureiras provando que menina pode tudo. E que, às vezes, esse ‘tudo’ não precisa ser tão complexo. A gente só precisa respirar e olhar para as estrelas.
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