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Foto: Joao Kehl
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De volta ao experimental, o diretor Jorge Farjalla oxigena a sua trajetória com “Álbum de Família”, de Nelson Rodrigues

A peça mais polêmica do dramaturgo ganha vigorosa montagem, em cartaz no novo Teatro Estúdio, que ressalta a hipocrisia da sociedade conservadora brasileira

Crítica Por Dirceu Alves Jr.

Desde a segunda metade da década de 2010, o diretor goiano Jorge Farjalla chama a atenção na cena paulistana em espaços tradicionais do circuito comercial. Foi assim com Doroteia (2017), montada no atual Teatro Bravos diante de uma estrutura de arquibancadas idealizada para a peça; Senhora dos Afogados (2018), no Teatro Porto Seguro, o mesmo palco em que estreou O Mistério de Irma Vap (2019); Brilho Eterno (2022), no Procópio Ferreira, e O Que Faremos com Walter? (2023), no Teatro Shopping Frei Caneca.

Em comum, estes espetáculos não identificavam Farjalla apenas como diretor, mas traziam um aposto aos créditos que confirmava a ambição em torno de uma assinatura marcante aos seus trabalhos – “Na visão de Jorge Farjalla”. Todos foram assim apresentados e, o que muitos pensam se tratar de um reforço egocêntrico, ratifica uma autoralidade fundamental aos encenadores de personalidade forte – o que, no caso dele, significa uma qualidade. Farjalla, sem desrespeitar os originais, busca incansavelmente uma reinvenção dos textos e, quase sempre bem-sucedido, deixa ressaltadas suas intenções.

Foto: Joao Kehl

Com Álbum de Família, incursão ao universo do dramaturgo Nelson Rodrigues (1912-1980), o artista percorre um caminho desconhecido, pelo menos para os espectadores paulistanos. Ele volta a dialogar com um experimentalismo capaz de oxigenar o seu trabalho daqui para frente em uma cena alternativa comparável aos modelos do seu começo profissional.

Esta é a terceira leitura do diretor para a obra mais polêmica de Nelson, escrita em 1945 e tirada do ineditismo somente em 1967, depois de duas décadas de censura. Através de Álbum de Família, Farjalla descobriu a potência do maior dramaturgo brasileiro em 2005, quando, recém-formado, fez sua primeira montagem da peça com os alunos Universidade Federal de Uberlândia (MG). Voltaria a trabalhar o texto em 2008, desta vez no Rio de Janeiro, sem grande repercussão. Nas duas versões, o artista estava em cena também como ator, primeiro como o personagem Nonô e, depois, na pele do patriarca Jonas. É a primeira vez que ele se contenta apenas com a direção.

Foto: Ronaldo Gutierrez

A atual montagem inaugurou o Teatro Estúdio, idealizado pelo ator Alexandre Galindo e pela atriz Mariana Barioni, intérpretes de Jonas e Dona Senhorinha, o casal central da trama. O espaço multiuso, com 242 metros quadrados e cinco metros de pé direito, pode acomodar entre 140 e 220 espectadores em arquibancadas ou cadeiras móveis, de acordo com a necessidade da produção, e parece uma ótima opção para produtores em busca de salas disponíveis.

Não se assuste com a localização, na Rua Conselheiro Nébias, 891, nos Campos Elíseos, entre a Rua Helvétia e Alameda Glete, região da Cracolândia. O charmoso e confortável espaço parece ter agradado ao público. As sessões têm registrado lotações esgotadas nos 142 lugares e, pode parecer bobagem, mas vale salientar que o serviço de manobrista é oferecido na porta, para quem for de carro. Em meio a esse conceito off-Broadway paulistano, Farjalla, porém, continua com um pé forte nas grandes produções e é responsável pelo musical Clara Nunes – A Tal Guerreira, protagonizado por Vanessa da Mata, atração do Teatro Bravos, em Pinheiros, a partir de 2 de agosto.

Foto: Ronaldo Gutierrez

Álbum de Família foi escrita em 1945, na esteira da consagração de Vestido de Noiva, segundo texto de Nelson, que, sob a direção de Ziembinski (1908-1978), estreou em 1943. A inovadora encenação apresentava três planos simultâneos no palco – a realidade, a memória e a alucinação – e é considerada o marco inicial do moderno teatro brasileiro. Na nova peça, entretanto, o autor foi bem mais atrevido ao mexer com os conceitos morais que na história anterior, sobre a disputa das irmãs Alaíde e Lúcia pelo amor de um mesmo homem.

Ambientada em uma fazenda do interior de Minas Gerais na década de 1920, Álbum de Família gira em torno do casal Jonas e Senhorinha (interpretado por Galindo e Mariana), religiosos e falsos moralistas, em meio a sentimentos incestuosos pelos quatro filhos, Edmundo (papel de Iuri Saraiva), Nonô (Agmar Beirigo), Guilherme (Daniel Marano) e Glória (Fernanda Gidali).

Nesta teia, Jonas abusa de garotas menores de idade como forma de reprimir o desejo por Glória, que acaba de ser expulsa do colégio interno acusada de lesbianismo e desperta a paixão em Guilherme. Edmundo, mesmo casado e vivendo fora da cidade, é apaixonado pela mãe, e Senhorinha ainda se relacionou sexualmente com o caçula, Nonô, que enlouqueceu e anda nu pela fazenda.

Foto: Ronaldo Gutierrez

As obsessões de pai por filha e mãe por filhos fazem as tragédias gregas parecerem quase leves, e Nelson com o seu chamado “teatro desagradável” ou “mítico” conseguiu – e consegue – perturbar o público. Se hoje ainda rende polêmicas, imaginem o que representou aos mais conservadores apenas a leitura de Álbum de Família em meados da década de 1940. “Não sei se gosto. Achei tudo muito pesado”, comentou uma espectadora de, talvez, 60 anos, na saída do Teatro Estúdio, no mês passado.

Entre as justificativas dos censores para a proibição do texto, na década de 1940, foi observado “incesto demais”, “insistência na torpeza”, “incapacidade literária”, “falta de um diálogo nobre”, “morbidez” e “imoralidade”. A obra só ganhou os teatros em 1967 sob a direção de Kléber Santos, no Rio de Janeiro, e foi levada às telas em 1981 pelo cineasta Braz Chediak. No mais, ficou tida como uma peça maldita e uma das poucas adaptações vistas em São Paulo foi dirigida por Alexandre Reinecke, em 2007, com os atores Cacá Amaral, Denise Weinberg e Ângela Barros nos papéis de Jonas, Senhorinha e Tia Ruth. Na década de 1990, o texto ganhou releituras dos mineiros do Grupo Galpão e dos gaúchos da Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz.

Foto: Ronaldo Gutierrez

Na visão de Farjalla, a dramaturgia de Nelson nunca esteve tão contemporânea. Embora siga fiel ao tempo cronológico definido pelo autor, a década de 1920, o diretor salienta os possíveis comportamentos das ditas moralistas famílias brasileiras dos últimos anos que condenam os outros em relação a tudo, mas praticam o que há de mais grotesco por debaixo dos panos. Para ele, a montagem critica o sistema patriarcal, o abuso sexual e a pedofilia – e é isso mesmo o que o espectador pode perceber ali.

A cenografia, idealizada pelo diretor, traz o palco coberto por lama e, conforme a peça se desenrola, os personagens se lavam com um pano molhado em uma bacia de água. Só que quanto mais se limpam, mais se sujam, porque o tecido já passou pelos corpos dos outros. Esta simbologia é uma das tantas usadas por Farjalla para metaforizar a hipocrisia e a perversão dos personagens.

A ambientação do Teatro Estúdio, que faz a peça ser montada como se fosse em um corredor, com cadeiras dos dois lados, é um achado para aproximar o público da ação e deixá-lo propício a se sentir em contato direto com a sujeira da família. A iluminação, criada por Aline Santini, dosa claros e breus, com imagens que remetem a rituais religiosos, e a trilha sonora, selecionada pelo próprio diretor, reforça o caráter brasileiro com as composições do sambista Cartola (1908-1980), As Rosas não Falam, Acontece, Alvorada e O Mundo é um Moinho.

Foto: Ronaldo Gutierrez

As temáticas exploradas por Nelson nunca saíram da pauta, mas hoje elas podem não significar um trauma solitário e as denúncias – ou, pelo menos, os debates – se tornaram mais frequentes. Farjalla teve a sensibilidade de entender que este era um momento oportuno para revisitar Álbum de Família e usar o seu teatro de imagens como maneira de revigorar a dramaturgia rodriguiana. Espetáculos com elencos números, por restrição orçamentárias, são cada vem menos comuns e, aqui, o diretor consegue alcançar uma boa unidade. São doze atores e atrizes ao todo e, além dos já citados, Helena Cury, Jullia Leite, Lakís Farias, Lara Paulauskas, Lídia Engelberg e Roberto Borenstein completam o time.

Alexandre Galindo carrega a expressão perturbadora de Jonas, aquela dureza dos latifundiários sem possibilidade de delicadeza, que pode transmitir o horror sem sequer elevar o tom da voz. Como Senhorinha, Mariana Barioni demora a revelar o lado sombrio da personagem e ganha gradativa força à medida que os conflitos com Edmundo (Iuri Saraiva) vêm à tona. Saraiva é um dos melhores atores da cena paulistana na atualidade e sua versatilidade é constantemente comprovada em personagens diferentes e complexos, como é visto, mais uma vez, no atual trabalho.

Também funciona bem a introspecção que vai aos poucos se desfazendo proposta por Daniel Marano como Guilherme, e o ator forma uma boa dupla nas cenas junto da atriz Fernanda Gidali, a Glória. As intervenções de Agmar Beirigo como Nonô aumentam o clima de tensão e ratificam a proposta plástica da encenação de Farjalla. Uma atriz que se sobressai ao longo da peça é Lídia Engelberg, a Tia Ruth, a cunhada e cúmplice de Jonas.

Foto: Ronaldo Gutierrez

Farjalla levou ao palco Álbum de Família com coragem, com as vísceras e conectado a uma realidade que pode parecer distante de muita gente ainda hoje, mas talvez não seja – o que mostra que Nelson ainda pode chocar os espectadores. O trabalho, em um formato mais intimista de encenação e sem a pretensão de causar reboliço no mainstream, faz diferença em uma trajetória ascendente e que sempre se mostrou relevante.

Das duas obras de Nelson que o diretor assinou em São Paulo – Doroteia e Senhora dos Afogados – é certamente a melhor versão e representa a retomada de uma essência inventiva tão bem explorada em O Mistério de Irma Vap, com os atores Mateus Solano e Luís Miranda, e Brilho Eterno, protagonizada por Reynaldo Gianecchini, mas que derrapou pesadamente em O Que Faremos com Walter?. A sentimental comédia argentina, apesar de um elenco de peso, que tinha, entre outros, Elias Andreato, Grace Gianoukas e Marcello Airoldi, perdeu a graça e o afeto pela excessiva racionalização da sua leitura.

Foto: LAKSFA

A liberdade de experimentar, mesmo em um terreno seguro para ele, como é o caso de Álbum de Família, é o que faltava para Farjalla voltar ao posto do grande encenador que tem demonstrado ser nos últimos anos e que, tomara, entregue uma visão arrebatadora no musical Clara Nunes – A Tal Guerreira.

Nota: As informações e opiniões contidas neste artigo são de inteira responsabilidade de seu/sua autor(a), cujo texto não reflete, necessariamente, a opinião do INFOTEATRO.

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Dirceu Alves Jr.

Dirceu Alves Jr.

É jornalista, escritor e crítico de teatro, trabalhou em Zero Hora, IstoÉ Gente e Veja São Paulo e publicou os livros Elias Andreato, A Máscara do Improvável (Humana Letra) e Sérgio Mamberti, Senhor do Meu Tempo (Edições Sesc).

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