Desde que comecei a escrever para o Vogue Gente tinha entre as minhas ideias abordar a relação entre moda e teatro. Nada mais natural, não é mesmo? Trazer o assunto das entranhas que envolvem estes dois mundos, em uma coluna de teatro dentro do site da mais reconhecida plataforma de moda nacional e internacional. Queria falar sobre um aspecto importante da arte de representar que são os figurinos… ninguém duvide da importância do figurino para o artista “entrar” na personagem.
Mas as minúcias envolvendo o assunto são infindáveis, e o espaço, aqui, pequeno diante desse universo. A começar pelo grande número de estilistas que, ao longo de suas carreiras, se tornaram grandes figurinistas do meio teatral. Christian Lacroix, Valentino, Versace e Stella McCartney – por exemplo. Na realidade, este trânsito entre as passarelas e os palcos, ganha força nos primórdios do século XX, quando Coco Chanel desenhou, pela primeira vez, figurinos de produções do Ballets Russes. A partir daí, estilistas começaram a ser chamados, com maior frequência, para assinar figurinos de espetáculos de dança, ópera e teatro.
Outra relação possível e que, para mim, parece a mais subjetiva de todas, é que tanto o teatro, como a moda, são expressões latentes de todas as culturas. Isto é, a partir da moda e do teatro, é possível estabelecer panoramas históricos, sociais e, até mesmo, políticos. São mundos repletos de criações e artistas que, ao longo dos séculos, imprimiram suas marcas na cultura e foram por ela influenciados.
As tendências da moda sempre andaram lado a lado com as figuras mais relevantes do teatro. As grandes damas – brasileiras e estrangeiras – sempre foram, de alguma forma, ícones da moda. Quantas vezes pessoas não foram inspiradas pelos artistas, copiando seus modos de se vestir e de ser?
No entanto, com a estreia da peça Maria Thereza e Dener – que por sinal já está em seu último mês de apresentação – encontrei a oportunidade perfeita para ressaltar que moda e teatro têm muito em comum. Trata-se da história de profunda amizade (e confidências) de Maria Thereza Goulart (1940), a então esposa do ex-presidente João Goulart – considerada, por muitos, a primeira-dama mais linda do Brasil –, e Dener Pamplona de Abreu (1936-1978), o pioneiro da alta-costura brasileira.
Um de meus grandes prazeres no teatro é encontrar personagens históricas ou icônicas representadas por atores e atrizes; é uma experiência incrível ter a representação de personagens não inteiramente ficcionais… Permite-se ao espectador viajar no tempo e reviver o passado em carne e osso, ao vivo e em cores. E, quando penso em Dener Pamplona (interpretado pelo ator Thiago Carreira), fico curiosa por imaginar sua figura – de certo, excêntrica – nos palcos dos nossos tempos. Como contou a atriz Angela Dipp: “Daria para criar diversas peças somente sobre Dener, ele é uma personagem incrível, assim como Maria Thereza.”.
Contemporâneo a Clodovil – com o qual mantinha certa rivalidade – Dener Pamplona foi um dos principais nomes a conceber looks inspirados em elementos totalmente brasileiros. Foi por sua criatividade e ousadia que algumas moças e senhoras da alta sociedade e do mundo artístico deixaram de cobiçar apenas a moda parisiense e passaram a usar algo realmente brasileiro. Pode-se dizer que o estilista foi um dos maiores precursores da moda nacional. Porém, sua grande inspiração era a moda de Balenciaga, uma espécie de mestre para Dener.
Foi dele a concepção do vestido de casamento da grande Elis Regina, além de ter vestido figuras importantes como Hebe Camargo e, a grande dama do teatro, Cacilda Becker. Embora alheio à política, uma de suas primeiras clientes importantes foi justamente Sarah Kubitschek, esposa do presidente JK e, antes do Golpe Militar, também vestiu Maria Thereza Goulart, nossa personagem da peça (interpretada pela atriz Angela Dipp).
Maria Thereza, frequentemente comparada a Jacqueline Kennedy, além de ter sido vestida, foi preparada pelo amigo Dener para a vida social obrigatória da jovem primeira-dama. No início de sua vida pública, ela era considerada, pela imprensa, uma jovem elegante, porém simples. Mas, por conta dos incontáveis conselhos do amigo estilista, passou de jovem despreparada para a esposa participativa e influente do presidente João Goulart. O que torna a figura de Maria Thereza ainda mais interessante é que ela enfrentou a mudança mais atribulada, não apenas de sua vida, mas da nação: a queda do governo de seu marido.
Importante dizer que, no caso da peça, dirigida por Ricardo Grasson, não apenas a sincera amizade entre essas duas figuras é retratada, mas, também, a história política do turbulento período da política brasileira – e suas consequências para a atualidade. Escrito por José Eduardo Vendramini e Wagner Wiliam, o texto é baseado no livro Uma Mulher Vestida de Silêncio – a biografia de Maria Thereza Goulart (Editora Record, 2019), do próprio jornalista Wagner William.
Os atores contaram um pouco mais sobre o processo de criação do espetáculo:
Angela Dipp: “Os dois se encontraram em uma época muito importante, um ajudou muito o outro – ele a fez ser aceita pela elite quatrocentona e ela o colocou na alta roda do poder. Eles se encontraram em uma época efervescente, de importantes mudanças: o que os anos 1950 tentaram de rebeldia, deu certo por volta de 1958. Foi nessa época que aconteceu a implementação do biquíni, do jeans, Beatles, jovens que começaram a se vestir propriamente como jovens… A mudança de comportamento estava nas bancas, nas revistas de moda. É nessa época que se encontram.”
Thiago Carreira: “O legal da peça é que ao longo do bate-papo dos dois, vão entrando diversas informações importantes a respeito do país; os anos dourados, o golpe… O engraçado é que, assim que começaram a sair fotos do espetáculo, muitos amigos falaram: ‘Nossa, meu sonho é fazer o Dener no teatro’. Mas confesso que eu próprio, antes do processo, não o conhecia. Muitas pessoas, hoje, não sabem quem foi essa grande figura: o revolucionário da alta-costura do Brasil.”
Ou seja, é preciso que essa história seja contada nos dias de hoje. E nada melhor que o teatro para informar e divertir a todos nós!
Teatro Eva Herz: Livraria Cultura do Conjunto Nacional – Avenida Paulista, 2073, Cerqueira César, SP. Até 28 de abril, quartas e quintas, às 21h. Sympla.com.br
Nota: Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Vogue Brasil.
Este texto foi, originalmente, publicado no site da revista Vogue Brasil, dentro do segmento ‘Gente’. Para acessar a publicação original, clique aqui.