“Escrever é olhar para esse abismo, atacar essa aparência, essa fachada”, diz o ator Renato Livera, sob a máscara do escritor chileno Roberto Bolaño (1953-2003), nos primeiros minutos do monólogo Deserto. Com dramaturgia e direção de Luiz Felipe Reis, o espetáculo, em cartaz no Sesc Santana, é uma daquelas unanimidades dos palcos cariocas que gera expectativas até chegar a São Paulo. Estreado em maio do ano passado no Rio de Janeiro, Deserto formou um fã-clube disposto a elogiá-lo energicamente, a ponto de despertar desconfiança na capital paulista com sua inabalável autoconfiança no fazer teatral.
Assumindo o preconceito, pairava a dúvida… Seria um espetáculo para poucos, hermético ao tratar da vida e obra de um escritor, ou alguma barreira da comunicabilidade teria sido rompida por Reis a ponto de propiciar um encantamento mais amplo? A resposta, felizmente, é que, como espetáculo, Deserto não tem nada de hermético e, apesar de guiado por uma inspiração cerebral, Reis e Livera tocam em pontos que, mesmo aqueles que jamais leram ou ouviram falar do autor de Putas Assassinas e Os Detetives Selvagens, se entregam à história.
O principal motivo é Deserto, desde o primeiro momento, derrubar os tais preconceitos que o espectador chato ou desavisado leva ao teatro. Mesmo se você estiver cansado das dezenas de peças no formato de palestras que estreiam por aí, dê uma chance a Deserto. Seria mentira falar que não se trata de uma peça-palestra ou de uma peça-depoimento. A dramaturgia pensada em conjunto com a encenação, entretanto, faz com que esta opção narrativa seja espraiada para diferentes formatos.

Luiz Felipe Reis promove um diálogo do teatro e do cinema para retratar os tempos presente e passado e faz Livera interagir, em certos momentos, com a câmera em tempo real – o que pode não ser novidade, mas flui com uma naturalidade que, além do efeito visual, sobrepõe camadas do personagem que envolvem o espectador. Livera, como Bolaño, conversa consigo mesmo em diversas cronologias (a do presente, com a entrevista e a peça em si, e a do passado, da imagem pré-gravada). Vivo ou morto? Documentário, ficção ou autoficção?
Não há um excesso intelectual por trás deste retrato do escritor, convenhamos pouco popular, que possa repelir o público. Realmente, Livera, na pele de Bolaño, começa com o lamento do artista que não é reconhecido pela expressão do talento, precisa de subempregos para pagar as contas, como se essa não fosse a realidade da grande maioria dos seus colegas, e do quanto a literatura é pouco valorizada em uma sociedade capitalista e superficial.
Algo, porém, ultrapassa o óbvio. A plateia passa a entender o personagem em suas frustrações e, quem sabe, pode colocar-se em seu lugar. Nesta altura, o autor tem 39 anos, 20 deles dedicados à escrita. “Achei que seria o meu auge e até agora nada”, afirma. Até que ele decide parar tudo, dispensar trabalhos que só lhe tragam o sustento e se voltar exclusivamente para os livros. É o tudo ou nada. É o deserto, a seca, a falta, assumindo o deserto, a seca, a falta.
Não foi apenas a passagem do tempo que gerou a profunda inquietação em Bolaño, mas a sensação da finitude às vésperas dos 40. A proximidade da morte não era uma novidade para a sua geração, que conheceu o mundo adulto debaixo do autoritarismo do ditador Augusto Pinochet (1915-2006). Só que, desta vez, o diagnóstico de uma doença hepática crônica, em 1992, agiu como motor. Concentrado, o jogo virou para Bolaño, que corria contra o tempo.

Publicado em 1996, o romance Estrela Distante, uma certa alegoria para mostrar os traumas de sua geração diante da derrubada do presidente Salvador Allende (1908-1973), rendeu considerável repercussão. O primeiro grande sucesso veio com Os Detetives Selvagens, de 1998, reconhecido e premiado, sobre dois poetas envolvidos em uma investigação policial.
Na fila por um transplante de fígado que nunca chegou, a urgência em deixar registrada a relevância criativa inspira o tema da suposta palestra ministrada por Bolaño, Literatura + Doença = Doença, e define o espetáculo criado por Luiz Felipe Reis. É nesta época também que o autor se dedica ao monumental romance 2666, com quase 1000 páginas, lançado postumamente, em 2004, e vencedor do National Book Critics Circle Award, nos Estados Unidos
Deserto é sobre literatura e um homem que se aproxima da morte, mas, principalmente, sobre uma vocação que consome os seus dias, suga o seu equilíbrio físico e mental e, para isso, não existe cura. Livrar-se desta “doença” em nome de alguma outra atividade ou estilo de vida seria o mesmo que morrer, no caso um suicídio para Bolaño. O embate entre vocação, talento e a necessidade do “fazer” amplia significados e chega ao teatro que, em tempos de ressignificação, adere a malabarismo para ser consumado.
Esta busca pela compreensão do espectador pode ser consequência, mesmo que inconsciente, da formação de Reis como jornalista e profissional da imprensa, dedicado muitos anos como repórter de teatro do Jornal do Brasil e de O Globo. Ele sabe da necessidade de atingir um amplo número de leitores e, agora, dentro do possível, não se imagina como o encenador incompreendido que deixa o público dominado pelas interrogações.
Também pode estar ligada a uma visível paixão pela literatura comprovada na carreira de encenador e dramaturgo junto à Companhia Polifônica. Em 2023, ele levou ao palco o espetáculo Vista, adaptação do romance Vista Chinesa, da escritora Tatiana Salem Levy, inspirado em um caso real de estupro contra a protagonista feminina, interpretada pela atriz Julia Lund. Sua mais recente montagem, Eddy – Violência e Metamorfose, em codireção com Marcelo Grabowsky, discute homofobia a partir de vivências do autor francês Édouard Louis e dá sequência a uma investigação baseada em literatura e comportamento. João Côrtes, Julia Lund e Igor Fortunato estão no elenco da peça, em cartaz no Teatro Poeira, no Rio.

Este antes e depois de Deserto permeia o espetáculo que pode ser visto atualmente em São Paulo tendo em comum a humanização de um personagem e o descolamento deste de um excessivo e perigoso discurso teórico. Por isso, o que se vê no Bolaño representado por Livera é o retrato existencial de um homem que, além da crise pessoal e da ameaça pela finitude, se conecta a temas como família, imigração, identidade e política, já que atravessou todas as experiências.
Bolaño nasceu no Chile, passou a adolescência no México e, depois da volta ao país natal, mudou para a Espanha, onde morreu em 2003. Foi lá que o escritor amadureceu e tomou forma, mesmo que suas temáticas permanecessem voltadas às suas origens. Esta questão do cidadão sem pátria definida é outro ponto de conexão com o tema da imigração e a dificuldade de firmar uma identidade em territórios diferentes. Não há um excesso de “eu”. Não se trata de um solo confessional focado em um universo individual disfarçado de coletivo. Deserto é sobre muitos e tantos.
Em sua trajetória como ator, Livera tem um outro espetáculo que encontra pontos em comuns com Deserto. Em Colônia, monólogo com dramaturgia de Gustavo Colombini dirigido por Vinicius Arneiro em 2017, o intérprete viveu um conferencista que revela os bastidores escusos do hospital psiquiátrico da cidade mineira de Barbacena. Entre as décadas de 1960 e 1970, a instituição abrigou pacientes que, em sua maioria, não tinham diagnóstico de loucura e vários deles foram para lá como represália à oposição ao regime militar. Eram pessoas banidas por setores conservadores, o que não as diferencia tanto da trajetória de Bolaño no quesito de inadequação e obsessão.

Mesmo que impressione pela semelhança com Bolaño, a interpretação de Livera é interiorizada, subjetiva e não se apoia na aparência física. O escritor não está mimetizado, mesmo que as projeções em vídeo incentivem as comparações. O imagético é um complemento para a angústia e o sentimento de incompreensão do personagem chegarem ao público. O protagonista, indicado ao Prêmio Shell carioca referente ao ano passado, mesmo tendo atuado em algumas novelas. não chega a ser popular. Por isso, tira proveito do rosto pouco conhecido, assim como o de Bolaño, para atingir o espectador sem que este seja guiado por referências.
Em um diálogo com a plateia, Livera, na pele de Bolaño, que deixou dois filhos, dá um conselho aos jovens que, por sorte, se enxerguem diante da biblioteca dos pais: “Leiam os velhos poetas, cuidem dos seus livros”. Deserto, além de ser uma bela e tocante montagem, desperta o interesse de espectadores de todas as idades para a obra do escritor chileno e, só por esta provocação, já supera a meta de ser vista apenas como um espetáculo teatral.
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