Os espetáculos biográficos de grandes cantores brasileiros estão para o teatro musical como as novelas para o público da televisão nos velhos tempos. É difícil não se deixar envolver com uma fórmula que reúne bons atores, histórias de superações e uma memória afetiva embalada por grandes sucessos. Além disso, a sensação de que se assiste a um show destes célebres artistas – mesmo que no formato de cover – leva o espectador a saciar a saudade dos seus verdadeiros ídolos no palco.
Djavan – O Musical: Vidas pra Contar, em cartaz no Teatro Sabesp Frei Caneca, em São Paulo, é o novo representante deste modelo recorrente e quase sempre infalível. Com dramaturgia de Patrícia Andrade e Rodrigo França e direção de João Fonseca, o espetáculo idealizado pelo produtor Gustavo Nunes cumpre o objetivo de biografar um artista pouco afeito à exposição e encontra no seu diferenciado cancioneiro o atrativo para estabelecer uma narrativa coerente. A direção musical leva as assinaturas de Fernando Nunes e João Viana, filho do compositor.
Fator determinante para o acerto é a escalação do artista mineiro Raphael Elias, peneirado entre 250 candidatos, para o papel principal. O protagonista se aproxima tanto da figura do compositor e canta de maneira tão mimetizada que, mesmo evidenciando a carência de maiores recursos de atuação, é protegido pela estrutura do texto que não explora dramaticidade na trajetória de Djavan.
Na adolescência, em Maceió, o alagoano Djavan Caetano Viana, como tantos garotos da sua geração, pensou que ser jogador de futebol. Entretanto, a intuição da mãe, a lavadeira Dona Virgínia (interpretada por Marcela Rodrigues), que sempre apostou na música como o caminho natural, o levou a desenvolver o real talento. A figura materna reina no começo da montagem com a dedicação à família que liderava sem uma presença masculina e a persistência de incentivá-lo nos sonhos mesmo diante das cobranças do irmão mais velho, Djacir (o ator Alexandre Mitre).

A jornada do herói começa quando Djavan decide tentar a sorte no Rio de Janeiro. Compreensiva, Aparecida (papel de Eline Porto, destaque absoluto como atriz e cantora), a primeira mulher do artista, fica em Maceió com uma filha pequena e outro na barriga. O protagonista ouve o tempo todo que sua música é pouco comercial, sofre um bocado até ganhar a primeira chance através do produtor João Araújo (papel de Gab Lara) e, depois da chegada de Aparecida ao Rio, a escalada à consagração vem a galope. São belas as cenas em que os dois vibram – e rezam – diante das chamadas telefônicas que revelam o assédio de grandes intérpretes interessados em sua obra.
Com o sucesso do artista, começa uma nova fase para o espetáculo, menos teatral e mais musical, que atiça a memória afetiva e leva o público ao delírio. Maria Bethânia, o primeiro nome de forte popularidade a gravar Djavan, é representada no limite da caricatura por Aline Deluna e traz à tona as canções Álibi e Tenha Calma. Quem escorrega na paródia é o ator Tom Karabachian como Caetano Veloso, destoando das representações de Chico Buarque, novamente por Gab Lara, e de Gal Costa (1945-2022), personificada por Walerie Gondim, que comove a plateia com as interpretações de Azul e Açaí.
Gratuita quase é a aparição de Erika Affonso na pele de Alcione, que, apesar de ter sido colega de Djavan na época de crooner de boate, não possui vínculos com a obra do compositor. Ela marca presença com o samba Gostoso Veneno, de Nei Lopes e Wilson Moreira, justificado por ter sido regravado em dueto com Djavan nos anos de 2010.
Fica clara a intenção de que Djavan – O Musical: Vidas pra Contar escolheu navegar por um oceano tranquilo, sem aprofundar conflitos ou crises existenciais que possam ter sacudido a alma do artista. A carreira de Djavan não coincide com o auge da repressão militar, o seu sucesso foi relativamente rápido (afinal, era um tempo em que a indústria fonográfica investia em talentos promissores) e, quanto à vida íntima, nada será acrescentado ao pouco daquilo que mesmo os fãs já sabem.

Como o compositor não tem uma biografia publicada e concede poucas entrevistas, ficou mais difícil para os autores estabelecerem este paralelo. Djavan sempre foi discreto e, ao longo dos anos, evitou abrir qualquer fresta de privacidade – o que, claro, é um direito dele.
Existe, porém, um limite entre a invasão de privacidade e a construção de um olhar humano sobre o personagem que poderia ter sido explorado e faria a dramaturgia se impor com força semelhante à das canções.
É inegável que a obra de um artista resulta de suas vivências – embora muitos gostem de afirmar, inclusive Djavan em uma fala da peça, que as criações derivam da ficção. Só que é um tanto abrupta a cena em que, de repente, Aparecida e Djavan conversam sobre a separação, Eline e Elias cantam lindamente Meu Bem Querer e aparece Rafaella (vivida por Walerie Gondim), que viria a ser a segunda mulher do compositor, para um dueto em Um Amor Puro.
Um recurso bem empregado para mostrar o inconsciente do artista é a figura de Elegbara (representado por Milton Filho), entidade afro‑brasileira simbólica, que serve de apoio narrativo constante para ilustrar a ligação do artista com a sua ancestralidade.

A opção de não aprofundar as relações humanas, porém, não compromete a recepção do público mais interessado no show com costuras biográficas. A grande habilidade do diretor João Fonseca na condução de musicais conta muito para que a questão seja contornada e passe despercebida para a maioria dos pagantes.
Encenador versátil e de clara preocupação com a satisfação do espectador, Fonseca tem expressivos momentos tanto no teatro de prosa como nos musicais, a exemplo de Tim Maia – Vale Tudo, o Musical e Cássia Eller – O Musical, ambos marcados por um equilíbrio técnico e emotivo de resultados vibrantes. O diretor encaixa as informações e torna fluente uma dramaturgia nem sempre linear, assim como a escolha das canções que também não obedece a uma ordem cronológica e ganha novas camadas – mais um fator positivo que foge da obviedade.
Um exemplo é Pétala, à primeira vista uma canção de amor de casal, apresentada com contornos fraternais para ilustrar a relação de Dona Virgínia com os filhos na cena de sua morte. Em outros casos, são meras reproduções de situações, como a apresentação de Djavan no Festival Abertura, de 1975, com Fato Consumado, ou a gravação de Samurai, nos Estados Unidos, tendo a participação do astro Stevie Wonder.
Revelador para o grande público é saber que Oceano, uma das obras-primas do compositor, teria ficado anos guardada numa gaveta e foi encontrada pela filha, Flávia. Episódios como este valorizam a dramaturgia de Patrícia e França e a direção de Fonseca pelo fator surpresa.
Como roteirista e dramaturga, Patrícia Andrade tem o domínio desta fórmula biográfica e emotiva, como demonstrou em Cássia Eller, Elis, A Musical e S’imbora, O Musical: A História de Wilson Simonal, os dois últimos escritos em dupla com Nelson Motta. Ela sabe mesclar a dose de informação de acordo com o material que tem em mãos e estabelece uma costura com as canções nem sempre previsíveis.
A parceria, desta vez, com Rodrigo França, ator e autor ativista em relação à representatividade preta, é marcada por intersecções com a espiritualidade afro-brasileira que, mesmo pouco explícitas na temática da obra de Djavan, não soam deslocadas na atual montagem. Mais forçada parece a discussão social, como na cena em que Djavan é preso.
Elis, Tim Maia, Cazuza, Elza Soares, Cartola, Martinho da Vila, Zeca Pagodinho, Alcione, Ney Matogrosso… Não são poucos os astros da MPB que tiveram biografias registradas no palco. O mais recente fenômeno é Rita Lee, Uma Autobiografia Musical, que, depois de permanecer um ano em cartaz em São Paulo com lotação esgotada, corre o Brasil mantendo a mesma ávida procura por ingressos.

Rita Lee, Uma Autobiografia Musical talvez seja o melhor exemplo deste desejo do público de se ver diante de seus ídolos em narrativas folhetinescas – ainda mais no caso da roqueira, cultuada por tantos e morta em 2023. Sustentado pela extraordinária performance da atriz Mel Lisboa, o musical se estrutura em uma dramaturgia frágil e excessivamente reverente à artista, mas capaz de realizar milagres aos olhos do público.
Que milagre é esse fica difícil de explicar…. Mas, em breve, teremos Gal Costa, Fafá de Belém e a lista de futuros musicais deve seguir rumo ao infinito. É como uma boa novela dos velhos tempos. Talvez seja preciso, em alguns casos, deixar o senso crítico de lado e embarcar em uma jornada de emoções, seja através da história ou simplesmente pelas músicas ouvidas – e bem interpretadas.
Por isso é tão importante a escolha do protagonista, e Raphael Elias cumpre com louvor o papel de personificar o cantor e compositor alagoano. Sendo assim, Djavan – O Musical: Vidas pra Contar não decepciona de jeito nenhum e faz o espectador deixar o teatro cantando e dançando, no caso ao som de Lilás e Flor-de-Lis.
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