Dizem que os elefantes usam os pés para “ouvir tempestades”. Antes mesmo do menor sinal de que o horizonte despencará em chuvas torrenciais, ainda com o céu azul, os pés pesadões dos paquidermes conseguem antecipar o que irá acontecer – e, assim, fugir antes que seja tarde DEMAIS. Os pés não foram feitos somente para ficar em pé, foram feitos para ouvir. Se os pés ouvem, as orelhas fazem o quê? Veem? Ver com os tímpanos! E os olhos, farejam? Estou vendo um cheiro delicioso! Eu acho tudo isso tão shakespeariano. Shakespeare até a medula dos ossos – justo os ossos, que em Shakespeare não são o que são, não servem para formar aquele esqueleto do senso comum, destinado a sustentar o corpo do homem e da mulher, mas, ao contrário, capacitam o sujeito que pisa o palco – o ator – de elasticidade suficiente para que ele fuja dos olhares da plateia assim que possível, ossos ágeis que servem para ele se demorar o menor tempo possível na mira indiscreta dos olhares alheios dos espectadores, e tchau! Sim, porque nada em Shakespeare é um convite ao estacionar-se, Shakespeare não convoca ninguém a habitar com os pés pesadões o centro da cena, não há tempo para que o ator preencha com seu “eu” interno e afetivo a substância emocional da personagem que representa, o Bardo Inglês – Santo Bardo! – evita qualquer enraizamento, toda e qualquer ideia de que o ator tem sob os pés um solo firme. O contrário!
Estão sentindo as vibrações? Patas de elefante. Os pés dos elefantes ouvem, o esqueleto do ator dobra a esquina. Ator e elefante percebem o problema antes dele acontecer e tão logo ele aparece, já sabem que dali é urgente fugir. Antes de matar Polônio Hamlet já sabe que irá mata-lo, e ao matar já sabe que terá de correr para fora da cena. O Fantasma que o Príncipe vê, ele já viu. Tudo já passou. É uma mistura esquisita entre passado e futuro. O tempo presente é de correria! Tchau! Resolva o seu problema, e suma daqui!
Eu acho que a gente deveria observar os elefantes quando quiser estudar um solilóquio shakespeariano. Aqueles movimentos lentos, quase letárgicos do bicho… aquele olhar aparentemente ausente… Tudo mentira! São hipócritas, assim como é por natureza e princípio hipócrita também o ator. Naquele estacionar fingido há um infinito de terminações nervosas percorrendo o organismo do elefante, e também do ator, que sabem ambos – ator e elefante – que o mundo está em desequilíbrio. O palco de Shakespeare é quente de fazer doer as palmas dos pés. Sem demora, sem preenchimento psicológico, sem essa coisa de gênese da personagem. Personagem nenhuma… Tudo ali são máscaras, figuras, composições humanas de um tamanho muito superior à adequação da psicologia de um indivíduo. Ser ou não ser, eis a questão… Tudo já foi respondido, e antes da dúvida da interrogação já se pressentiu que nada se sabe. Por que perguntar, então? Sei lá. Pergunte pro elegante como é que o bicho sabe que vem chuva por aí. É mistério semelhante ao do sujeito que existe para mentir ser o que não é.
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