Vinte anos separam Ensaio.Hamlet de Julius Caesar – Vidas Paralelas, espetáculo da Cia. dos Atores em cartaz no Teatro Anchieta do Sesc Consolação. Recém-chegado de uma temporada de estudos nos Estados Unidos, Enrique Diaz, principal diretor do grupo em 2004, comandou uma criação coletiva que desconstruiu a tragédia mais famosa de William Shakespeare em uma metalinguagem desenrolada nos bastidores de uma montagem teatral.
Os atores Bel Garcia (1967-2015), Cesar Augusto, Felipe Rocha, Fernando Eiras, Malu Galli e Marcelo Olinto se revezavam entre os personagens da peça do príncipe da Dinamarca e se descolavam deles para mostrar os altos de baixos da construção de um espetáculo. O resultado, muito bem-sucedido junto ao público e aos críticos, rendeu três anos de viagens e o começo de um ruído que culminou com o afastamento de Diaz do coletivo.
A Cia. dos Atores nasceu em 1988, no Rio de Janeiro, graças à vontade de uma turma de criar uma linguagem própria. Bel Garcia, Cesar Augusto, Drica Moraes, Enrique Diaz, Gustavo Gasparani, Marcelo Olinto, Marcelo Valle e Susana Ribeiro, todos por volta dos 20 anos, se conheciam de cursos de artes cênicas ou de amigos comuns e começaram a cavar oportunidades. Rua Cordelier, Tempo e Morte de Jean Paul Marat (1988) marcou a estreia e, na sequência, A Bao A Qu (1990), A Morta (1992) e Melodrama (1994), o primeiro grande sucesso, consolidaram um repertório experimental que, volta e meia, contou com colegas convidados para a divisão de funções.
Julius Caesar – Vidas Paralelas celebra a resistência de 35 anos da companhia teatral, algo que deve ser considerado um feito. Da equipe fundadora estão na ficha técnica apenas Gustavo Gasparani, como diretor, dramaturgo e ator, Cesar Augusto, ator, e Marcelo Olinto, na assinatura dos figurinos. Muitos buscaram outros caminhos, priorizaram carreiras solos ou se afastaram de vez, mas eles ficaram.
O projeto começou a ser desenvolvido antes da pandemia e menções a este adiamento são citados no texto. Um diretor externo chegou a ser convidado e iniciou os trabalhos e, como contratempos não faltaram nos últimos anos, as soluções acabaram dentro da própria casa – o que valoriza a comemoração e abre margem para reflexões mais profundas.
Assim como em Ensaio.Hamlet, Julius Caesar – Vidas Paralelas mostra o desenvolvimento de um espetáculo dentro do espetáculo e o quanto o lado humano de cada envolvido interfere na evolução do processo. A tragédia romana sobre o poder, porém, é bem menos conhecida que a do príncipe dinamarquês e talvez caiba uma breve lembrança do enredo. O governante romano Júlio César, prestes a ser proclamado imperador, se torna alvo de uma conspiração e, durante uma sessão do Senado, é apunhalado por opositores, inclusive Brutus, seu indiscutível aliado.
Caso a pandemia não tivesse existido – quem dera – e a montagem da Cia. dos Atores estreasse, quem sabe, em 2022, as possibilidades de leituras poderiam ter sido outras. Jair Bolsonaro, a facada da campanha, polêmicas no Congresso Nacional, polarização política e outros significantes dos noticiários ganhariam significados relacionados ao Brasil.
A maior sacada da Cia. dos Atores, porém, foi olhar para o próprio umbigo e descolar a visão do geral para o particular – algo que pode pegar mal em tempos de incansáveis questionamentos sociais e políticos. Aqui, porém, a escolha se mostra pertinente, talvez até pela própria crise pandêmica, que colocou em jogo, entre outras coisas, a sobrevivência dos artistas. Teatro e relações humanas também são parte da política e as disputas, sejam elas ditadas pelo gosto do poder, pela inveja ou pela vaidade, mapeiam micros e macrocosmos. No meio artístico, então, nem se fala.
A dramaturgia criada por Gasparani inspirada em Shakespeare começa nos entraves para levar a nova peça ao palco. É a pandemia, atraso no cronograma, incompatibilidade da agenda dos atores, a doença de um, a frustração de outro, a estreia na direção de uma integrante – mulher – que nunca tinha recebido tal responsabilidade. Ela é Catarina Ribas (interpretada por Suzana Nascimento), que vive o auge da popularidade como a vilã de uma novela e precisa se impor diante dos colegas de décadas – como mulher diretora e estrela da televisão –, mostrando que pode cumprir a tarefa sempre delegada aos outros.
Ricardo Silveira (papel de Gasparani) é o ator ressentido, invejoso, aquele que se considera o injustiçado diante de tanta dedicação ao grupo, e se tornou uma nuvem negra na cabeça de todos, inclusive na de seu marido, Júlio Costa (vivido por Cesar Augusto), mais sensível às dificuldades do trabalho. Eduardo Valente (representado por Isio Ghelman) ficou um ano afastado do palco para o tratamento de uma doença e volta fragilizado, mas grato pela confiança da amiga Catarina. Completam o elenco, Gabriel Manita, como Bernardo Cury, e Tiago Herz, na pele de Ângelo Almeida, os jovens da companhia, que ficam longe dos duelos dos colegas consagrados.
O ator, escalado para o papel de Júlio César, pulou fora por causa de uma proposta irrecusável para rodar um longa-metragem no Nordeste. Catarina propõe um processo de rodízio entre os componentes para a definição de quem será Júlio César. Os demais personagens – Brutus, Marco Antônio, Cássio – passam de mão em mão, a panela de pressão começa a ferver e nada de ela bater o martelo quanto ao papel-título.
Catarina se mostra insegura, sobe o tom com os parceiros, a televisão lhe exige maior presença nas gravações e a crise se instaura. Quando surge a desconfiança de que ela mesma pretende representar Júlio César, tem início uma conspiração para reduzir os poderes da diretora. Cabe a Eduardo Valente defendê-la, mas a indisposição com os demais colegas seria inevitável. “Até tu, Brutus!”, como diria Júlio César ao amigo, antes de ser apunhalado.
Gasparani é íntimo do universo de Shakespeare. Levou Otelo para o morro em Otelo da Mangueira, protagonizou uma versão em monólogo de Ricardo III e colocou canções populares em meio ao romance proibido no musical Romeu e Julieta ao Som de Marisa Monte. Desta vez, criou uma engenhosa dramaturgia em que cada um dos seus personagens pode ser identificado aos do bardo inglês. Os sentimentos extrapolam o terreno profissional, e a crueldade vem à tona, com cada um pensando em si e desprezando a longa história coletiva. “São as mesmas questões há 35 anos”, comentam Valente e Catarina, em tom de desabafo, no final de um ensaio.
A atual diretora lembra que todo mundo já viveu crises. Um teve problema com a mãe, outro passou temporadas no exterior dedicado a outros projetos, um terceiro, por acaso, o seu melhor amigo, ficou doente e contou até com seu dinheiro para a medicação. “Por que ela é demonizada, agora, pelo sucesso que faz em uma novela?”, pergunta-se.
O sucesso incomoda, mesmo o sucesso de quem se ama e admira. No caso dos atores e atrizes, então, o sucesso do outro na televisão é pecado, a traição ao teatro. Quem pode pensar assim é aquele que ficou devotado ao palco e, agora, se pergunta: “Por que aconteceu com ela e não comigo?”. É sobre isso Julius Caesar – Vidas Paralelas. Esta pergunta move o antagonismo de Ricardo Silveira e Catarina Ribas e permeia toda a ação. Ela pode ser vista como o próprio Júlio César, o ditador, o tirano que precisa ser destituído. Valente quase chega a ser Brutus, que, influenciado por Silveira e Costa, fica perto de trair a amiga. Mas, na verdade, todos são artistas e tudo o que se vê naquele palco é mentira – ou quase.
Gasparani é Gasparani, Suzana é Suzana, Augusto é Augusto, Ghelman é Ghelman. O aposto “Vidas Paralelas” abre a humanidade para “Julius Caesar”, e o teatro pode ser realmente cruel, autoritário, território de amarguras e frustrações. Não basta fazer sucesso, tem que fazer muito sucesso, não basta fazer muito sucesso, tem que receber ótimas críticas, não basta fazer muito sucesso e receber ótimas críticas, é preciso ser indicado a prêmios e, óbvio, ganhá-los.
Julius Caesar – Vidas Paralelas, por falar nisso, acaba de levar dois troféus da APTR (Associação dos Produtores de Teatro do Rio), o de melhor dramaturgia e de ator coadjuvante para Ghelman. Merecido. Muito bom o reconhecimento, mas não muda em nada o que pode ser visto no Teatro Anchieta. O espetáculo é ótimo, de qualquer jeito, e carrega o DNA da Cia. dos Atores, algo que se torna inevitável não reparar, principalmente depois do esquisitíssimo Insetos, de 2018, uma tremenda derrapada do diretor Rodrigo Portella junto ao grupo.
Assim, como na política, no teatro o céu é o limite e, quando o céu é o limite, a decepção fica inevitável, porque os artistas são humanos. Esta é a mensagem que fica de Julius Caesar – Vidas Paralelas e, por aceitar tamanha humanidade, cheia de fragilidades, decepções e até falhas de caráter, é que Gasparani, Augusto e Olinto justificam os motivos pelos quais a Cia. dos Atores sobrevive há 35 anos, quer dizer, agora já são 36. Melhor que ninguém, eles devem saber o que representa aquilo que é exposto em pouco mais de duas horas no palco.
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